Por Douglas Cavalheiro
Sócrates: "Conhece-te a ti mesmo"
A Problematização sobre o Extremo Individualismo
A
concepção de "homem" na modernidade tornou-se uma perspectiva
fundamentalmente materialista, próximo aos meios de produção em massa, o agente
metamorfoseia-se no homo faber, tendo
o seu sentido de existência como um mero objeto de consumo da mercadoria produzida.
Cabendo a função da violência o elemento de domesticação da única face
existencial do homem: o corpo. Reale trata que a perda da fé no homem gerou no
processo de animalização da humanidade, e consequentemente sua escravidão. Para
isso, ele vai fazer referência ao livro I da Política, Aristóteles que relata sobre
a escravidão, ou alienação, ser ocasionado em "quem pertence a alguém em
potência e participa da razão apenas no que se refere à sensibilidade imediata,
sem possuí-la propriamente, ao passo compete à sensibilidade, mas obedece às
paixões." (1254b 16-26).
A
máxima de Horácio Sapere Aude (Ouse
Saber) foi proferida por Kant em O Que é
o Iluminismo? como axioma do Aufklärung.
Buscando a substituir a antiga maneira de conhecimento através de um "amor
a sabedoria" da filosofia, uma perspectiva demasiada subjetiva para Kant,
e passou a ser organizada agora através de um imperativo normativo, na maneira
de uma lei universal racional. Agora cabe ao homem torna-se obediente a busca
do conhecimento, não por um impulso inspirador e arrebatador, mais pela norma
da ciência. Kant pretendia universalizar a busca ao conhecimento, visto que a
inspiração movida pelo amor era algo subjetivo que não levava a totalidade
das pessoas para busca da verdade.
Essa
obediência a lei moral procurava estabelecer que o homem teria um fim em si
mesmo, porém, tornou ele apenas um meio de utilização para os fins de dominação
do Estado e dos meios de produção em massa, resultando nos usos de cobaias
humanas para experimentos científicos e genocídios na modernidade. Por isso,
Foucault vai afirmar que a "morte de Deus" gerou consequentemente na
"morte do homem". Retirando todos os elementos divinos presentes no
homem, antes impulsionado pelo amor divino da criação, agora toma a forma da
loucura da busca da autossuficiência. Segundo a problematização de Reale
"a verdadeira pergunta é: como se pode viver, se a vida não tem mais
sentido?" (REALE, 2002, p. 161).
Tendo
observado as experiência do totalitarismo moderno e das armas de destruição em
massa muitos pensadores do pós-guerra passaram a criticar todo otimismo
epistemológico, a fé na razão e a obediência da lei moral kantiana. Segundo a
perspectiva existencial de Sartre, o homem torna-se escravo da liberdade, ou
seja, prisioneiro do absurdo. Segundo Camus[1]
" a crença no sentido da vida supõe sempre uma escolha de valores, uma
escolha das preferências. A crença no absurdo, de acordo com nossas definições,
ensina o contrário". (CAMUS, 1947, p. 88-89).
Reale
também crítica a perspectiva niilista que surge na cosmologia da ciência
pós-moderna como a teoria do caos e o
efeito borboleta de Edward Norton
Lorenz, que visa estabelecer uma perspectiva não linear da temporalidade. A
maneira de uma total atomização do
indivíduo resulta na seu desligamento da família, gerando uma falsa sensação de
liberdade, tornando-o um mero produtor físico e material escravizado pelas
forças externas da sociedade.
A busca do Outro como
o complemento da Individualidade
Ao
realizar uma digressão histórica, Reale retoma ao discurso de Aristófanes
realizado no diálogo do Banquete de Platão. Segundo Aristófanes os seres
humanos eram unidos em pares, que ao se locomoviam em circulo. Devido uma
revolta contra o Monte Olimpo, Zeus manda Hefesto fazer uma arma capaz de
corta-los ao meio, e caso necessário fosse, cortaria-los mais uma vez até
"saírem saltando de uma perna só". Dessa maneira, o homem possui sua
individualidade plena a partir de sua unidade ao próximo que lhe foi separado.
Em contrapartida, no momento em que a distinção material se vale como critério
seguro para se afirmar o espaço pleno da liberdade do indivíduo, esse vai
encontrar portanto dividido "saltando de uma perna só". Apenas
através da união plena com o Outro, o indivíduo é capaz de pode transcender a
realidade imanente da produção-consumo, romper o eixo de vida e morte, e
atingir assim o sentido da transcendência que é a sua imortalidade.
O Sentido da Alma
para os Antigos
Devido
isso Reale busca a compreensão do sentido de alma, inicialmente em Homero que interpretava o indivíduo como um
conjunto de órgãos, e a psique seria
um elemento do sopro final realizado pelo indivíduo que passaria a viver no
tártaro. Essa concepção será radicalmente transformada com a introdução das
religiões de mistério durante o século VI a.C. provavelmente influenciados pelo
Zoroastrismo, na qual acreditava nas mensagens de Orfeu e Dionísio, que
representavam a divindade que vencia a morte através de um processo de
purgação. O corpo material passa a ser dissociado a alma, colocado como um
elemento da queda do homem. A busca pela purificação estaria associada ao
crescimento intelectual através das ações éticas e justas.
Sócrates
a maturidade do conceito de alma estabelece através da máxima do Oráculo de
Delfos: "Conhece-te a ti mesmo". A máxima teria um sentido de
"coloque-se no teu lugar diante os Deuses", o autoconhecimento é
antes de tudo uma busca para compreensão de suas limitações, e não o contrário.
Dessa maneira, o daimon aconselhador
de Sócrates sempre o demonstrar as ações que não deveriam ser tomadas. Reale
reaproxima o conceito de alma de Platão as crenças do orfismo, tomando como
base para seu parâmetro a definição aristotélica de alma, que estaria ligado a
virtude.
Como
explicado na Ética a Nicomaco, as virtudes são a perspectiva da justa medida,
evitando tanto ao excesso como a carência. Apenas com através da conduta
virtuosa que o indivíduo é capaz de recuperar o seu sentido de existência da
contemplação da verdade. Segundo Aristóteles, o "spoudaios" é o único capaz de viver ausente de paixões (apatia)
e na imperturbabilidade (ataraxia), compreender e sentir a sensação do"thauma" que é a ação de
maravilhar-se, encantar-se, contemplar-se com a verdade. Dessa maneira, a
natureza divina presente o indivíduo se manifesta de maneira plena chamando-se
do princípio da dignidade humana.
A
Solução de Reale para o Individualismo Relativista Moderno
O
conceito de medida universal, afirmado pela máxima de Protágoras "o homem
é a medida de todas as coisas", sintetiza a maneira do individualismo
moderno. Após a proclamação da morte de Deus, a humanidade assina seu próprio
atestado de óbito, alienando-se da sua "imagem e semelhança" com a
divindade, o individualismo moderno atrelado ao caótico e insustentável
conceito material perde sua essência de natureza virtual e moral. O individuo
torna-se animalesco, sendo como meio para fins de instrumento de pesquisa
laboratorial e descartáveis como dejetos em valas comuns por qualquer regime
político. Resgatar a dignidade humana é antes de tudo resgatar a dignidade
divina.
[1]
Reale exemplifica sobre o problema à luz do mito de Sísifo. Reconhecido pela
sua astúcia, Sísifo provocou a ira dos deuses ao sequestrar Asopo, levando a Zeus ordenar que Tanatos
fosse punir Sísifo com a forte. Porém, com a chegada dela, Sísifo consegue
enganar ela com um colar que na verdade era uma coleira e a prende fazendo com
que ninguém mais morresse. Com a irá de Hades e de Ares, ambos libertam Tanatos
que leva Sísifo ao mundo dos mortos, onde tem seu castigo entre os rebeldes.
Porém, quando se despedia de sua mulher, Sísifo alerta para que deixasse seu
corpo sem ser enterrado. Dessa forma, ao chegar no submundo, antes de
atravessar o rio de Lete, Sísifo pede para Hades para que retorna-se para
lembrar sua mulher de lhe enterra. Sísifo volta a vida e engana a morte uma segunda
vez. Quando morre de velhice, os deuses condenam Sísifo a penalidade eterna de
levar uma rocha em uma coluna íngreme, em que após trabalho realizado a rocha
desceria tendo que realizar o mesmo trabalho ad infinitum. Assim como Prometeu que foi condenado por Zeus a
ficar acorrentado e um abutre comer seu fígado eternamente por ter ensinado o
homem a usar o fogo. Camus procura estabelecer na história de Sísifo um
paralelo com a realidade absurda e ausente de sentido. Tal como o sol que todos
os dias nasce tem seu ponto mais alto e se põe, Camus concluir que é preciso
"imaginar Sísifo feliz". Porém, segundo Reale " sua felicidade é
uma falsificação, é a felicidade do desespero, transformada numa absurda
aceitação consciente do absurdo" (REALE, p. 164).
Referências Bibliográficas
REALE, Giovanni. O Saber dos Antigos: Terapia para os tempos atuais. São Paulo: Edições Loyola, 2002.