GAM RESENHA: LIÇÕES DE ABISMO, DE GUSTAVO CORÇÃO

Por Arthur Dutra (*)

O que resta ao homem que sabe, com a certeza de informações cronológicas, que está à beira da morte, corroído pela doença? É o que podemos ver no livro Lições de abismo, do grande escritor e pensador católico Gustavo Corção. Pelo menos para o homem dotado de alguma capacidade e vivência intelectual que o permita olhar para a vida – e para a morte – sem a histeria de um desvairado, sem o temor de encontrar o nada, mas com a vontade de entregar-se nas mãos de Deus.

 José Maria, o personagem, faz-se Parsifal, o “inocente tolo” da ópera de Richard Wagner que consegue desvencilhar-se dos ardis sedutores de Kundry para ser o Rei do Graal, o Cálice Sagrado com o qual Cristo celebrou a Última Ceia e que recebeu seu sangue santo derramado na cruz. Parsifal, por graça de Deus, resiste à sedução de Kundry e destrói o jardim das donzelas-flores, plantado num ato de vingança pelo maligno Klingsor para aprisionar os Cavaleiros Templários, que o rejeitaram por sua torpeza de espírito, insuficiente para ser um dos guardiões do Graal. Klingsor é o anjo decaído que se rebela contra o Pai e envia seus agentes – Kundry e as donzelas-flores - para impedir os homens de acercarem-se do Graal e louvarem Nosso Senhor.

Kundry é a Morte que persegue José Maria de perto e quer levá-lo preso. Mas José Maria, transformado num Parsifal contemporâneo, sabe que deve vencer esta batalha para poder partir não como um depressivo cativo, aterrado numa morte melancólica, e sim como um liberto, de espírito aberto, rumo ao doce encontro com Nosso Senhor.

José Maria, abandonado pela mulher e pelo filho, resiste aos clamores da melancolia de uma morte solitária e não se apega ao frenesi de uma apropriação louca de cada minuto que resta. Não se entrega, desprecatado, aos poucos prazeres que ainda pode desfrutar nesse pouco tempo. Não! Seus melhores esforços, nessa reta final da existência mundana, os poucos que pode arrostar com algum proveito nobre, são empregados somente para si mesmo. Não de forma egoísta, não se fechando em si como se fosse uma velha caixa de papelão prestes a rasgar-se, isolado, perdido, escondido do que teme. Ele abre-se a si mesmo, iluminado pelo facho de luz opaca que sai da sua vida. O que ele fez durante esse tempo?, pergunta-se inicialmente, e lança o olhar crítico sobre o mundo tomado pelo coletivismo estúpido e pelos vícios das ideologias que querem explicar o mundo como se fosse um relógio de um ponteiro só.

Mas não são os atos que eram do seu dever que o vexam nesses derradeiros momentos, nem mesmo o sempre defeituoso mundo, repleto de pessoas igualmente defeituosas e frívolas. Fez o que deveria fazer, e não há nada de errado nisto. A pergunta que se impõe é: o que não fiz? Eis o que preenche sua alma nos últimos dias de sua vida. É esta pergunta que o fará triunfar diante dessa mórbida Kundry.

O que não foi feito, porém, pode sê-lo naquele instante fugaz, pois é uma tarefa que exige mais vontade do que tempo. É conhecer-se, abrir os recantos de sua alma para si mesmo. Muitos foram os motivos para o adiamento quase fatal desta tarefa. A fuga da mistura, do emaranhado de outras almas, pobres almas, é uma dessas omissões, conforme confessou na emblemática conversa com o Dr. Aquiles:

“- A história de minhas omissões, tôda a minha história cabe nestas poucas palavras: um insensato horror à mistura. Foi o senhor mesmo que descobriu. Realmente, eu sonhava um mundo de cristal... queria ter no sangue rubis verdadeiros, de Bruma!- Mas esses rubis existem! exclamou o doutor.- Eu sei.- Existe o genuíno, existe a verdade, mas é preciso buscá-la na mistura, é preciso aceitar por algum tempo a confusão do joio e do trigo. Deus poupou-lhe o calor do meio-dia, que a Êle mesmo fatigou, quando veio sentar-se junto ao poço de Jacó, para dizer à moça samaritana que chegara o momento de adorar a Deus em espírito e verdade. Deus poupou-lhe de tudo isso, mas agora permita-me dizer-lhe uma coisa muito importante: Êle não dispensa um mínimo, um mínimo que, explorado a fundo, pode transformar-se em um máximo. Êle não dispensa um certo mínimo, mesmo na undécima hora...”

A tola busca de uma pureza sem o contato com a miséria do mundo o fez apenas mais miserável, distante de si e mais ainda do outro. Não mergulhou ele nos abismos da subjetividade, da sua própria, do pecador, do virtuoso, do fariseu, enfim, de ninguém, e por isto anda a praticar, nos derradeiros suspiros, lições de abismo antes de pular de cabeça, antes que seja tarde. E ele parte, tomado de coragem, para o encontro, para o definitivo reparo de uma vida que quase malogrou.

Não fosse a morte certa, e já bem próxima, ele teria partido sem experimentar o doce sabor de se reconhecer, naquela undécima hora de que lhe falou o Dr. Aquiles, uma alma que, embora ainda deguste resquícios de um antigo amargor, está agora iluminada pelo resplandecente facho da vibrante luz divina, a qual Kundry nenhuma é capaz de eclipsar.


(*) Publicado na 9ª edição d'O Coyote.

GAM FOTOS: ORDEM E HISTÓRIA NA OBRA DE ERIC VOEGELIN

O GAM mais uma vez reuniu seus membros no último sábado, 20 de junho, desta vez na residência de André Luiz, membro do GAM e do grupo Força Democrática, dada a impossibilidade temporária no auditório da Livraria Saraiva.

O tema deste encontro foi a obra "Ordem e História", de Eric Voegelin, que foi apresentada por Sérgio Meneses, graduando em Filosofia pela UERN - Campus Mossoró, e estudiosa da obra do grande filósofo alemão.

Abaixo algumas fotos de mais este agradável e proveito encontro do GAM.













REUNIÃO DO GAM - ORDEM E HISTÓRIA NA OBRA DE ERIC VOEGELIN


No próximo sábado, 20 de junho, às 14h, o GAM se reúne para mais um encontro de cultura e convivência.

O tema desta vez é "Ordem e História na obra de Eric Voegelin", que será apresentado por Sérgio Meneses no auditório da Livraria Saraiva do Midway Mall.

Convide seus amigos para conhecer a obra deste grande filósofo do século XX.

A entrada é franca e haverá exemplares da 11ª edição do Coyote para vender.

Aguardamos todos lá.

Sarau Literário Auta de Souza - Machado de Assis


O Grupo de Estudos André de Albuquerque Maranhão está formando um núcleo de estudos literários, com objetivo de realizar um processo de alfabetização literária a partir da obra de Machado de Assis. As reuniões ocorrerão na casa de Camilo Soares (Rua Dom Expedito, 1807, Candelária), e serão iniciadas às 15 horas, com fim previsto para as 18 horas. Na primeira etapa será realizado um sarau, com leitura de poesias e análises estruturais (rimas, ritmo e métrica) e de significado. 

Posteriormente, os participantes lerão uma poesia de autoria própria, a fim de adentrar na prática da escrita poética. Na segunda etapa, será realizada a análise das obras de Machado de Assis, na qual também serão apresentados pequenos contos ou crônicas escritas a partir das características literárias machadianas.

As reuniões do mês de junho serão destinadas ao estudo as obras de primeira fase de Machado de Assis, quando ainda se encontrava sobre a influência da literatura romântica.

Segue abaixo o cronograma das reuniões e das obras que serão lidas em junho/2015

11 de junho - Ressurreição (18h)
19 de junho, às 18:30h – A Mão e a Luva
A definir - Helena
A definir – Iaiá Garcia



GAM FOTOS: O LEVIATÃ NO SÉCULO XXI, POR RUBENS RAMOS

No último sábado, 30 de maio, o GAM recebeu a ilustre visita do professor Rubens Ramos, Engenheiro Civil, Mestre e Doutor em Engenharia e professor da UFRN. Na sua palestra, o professor Rubens falou sobre "O leviatã no século XXI", tendo como base o livro "O Leviatã", de Thomas Hobbes.

Por duas horas de intensos debates, o GAM e o professor Rubens trataram sobre o papel e o tamanho do Estado no nosso tempo, bem como as condições para que ele seja não um monstro espoliador e invasivo, mas algo que lembre um pouco aquela figura que motivou o homem a um dia criá-lo.

Abaixo algumas fotos do encontro.



























RESENHA DO GAM: OS DEMÔNIOS

Por Arthur Dutra

Um romance-panfleto que impressiona por sua profundidade. Em “Os demônios”, Dostoiévski alia toda sua categoria de ficcionista ao ímpeto panfletário de quem busca denunciar algo. O ponto central é a descrição da atuação de uma sociedade secreta de caráter niilista com fins revolucionários que age na Rússia, capitaneada por um certo Piotr Stiepanocitch Vierkhoviénski, inspirada na existente em meados de 1860 denominada “Justiça Sumária do Povo”. A estória é, portanto, baseada em fatos reais que na época chocaram a sociedade russa. Trata-se do assassinato do estudante I. I. Ivanov pelos próprios companheiros revolucionários, motivado pela suspeita de que este fosse delatar as ações criminosas do grupo.

Até o romance engrenar lá se vão mais de 200 páginas, momento em que pela primeira vez aparece alguma menção aos “demônios” que intitulam o livro, que é a denominação que dá o personagem do Capitão Lebiádkin à sociedade secreta. A ação do grupo revolucionário é engendrada pelas figuras de Piotr Stiepanovitch Vierkhoviénski e Nicolai Vsievolodovitch Stravóguin. Um, o líder operacional da fraternidade; o outro, um símbolo de inspiração para o chefe, e um dos mais complexos personagens criados por Dostoiévski.

Pois bem. Dentre muitas questões que merecem a análise romanceada de Dostoiévski, uma delas é o embate entre os conservadores e os revolucionários. A representação romanesca deste antagonismo fica evidente na estranha relação entre o governador da província, Von Lembke, e Piotr Stiepanovitch. Lembke fala: “Apenas seguramos o que os senhores abalam e aquilo que sem nós se desfaria em muitos pedaços”. Do mesmo modo que a mulher do governador, Yúlia Mikhailovna, acontece dos conservadores subestimarem os planos e ideias dos revolucionários, e, assim, abrirem caminho seu para agirem livremente. Isso fica mais claro ainda quando o próprio Piotr Stiepanovitch assinala que “O senhor é quem sabe, mesmo assim o senhor abre o caminho para nós e prepara nosso sucesso” (página 311)

Ou seja, o próprio revolucionário enxerga as fraquezas do regime instituído e vê neles o caminho por onde faz entrar seus propósitos, porém, não de forma honesta e aberta, e sim camuflada, sorrateira, enganando os que os tratam de boa-fé e transformando-os em verdadeiros idiotas úteis. Para tanto, valem-se da guerra no campo cultural, tática que Dostoiévski já houvera detectado antes mesmo de Antonio Gramsci a sistematizar com seu conceito de “Revolução Cultural”, que é a destruição completa dos cânones da cultura ocidental-burguesa-cristã a fim de implantar o regime socialista, o que de fato terminou por acontecer em sua modalidade insurrecional na Rússia por obra da Revolução de 1917, cujo terreno já vinha sendo preparado desde antes. Para tanto, urgia trazer a inquietação e a desordem à sociedade e, para isso, qualquer tipo de gente serviria, notadamente os criminosos de todo gênero, “Aí qualquer grupo sarnento será útil”, página 410¸assim como outros cidadãos que, sem saber, professam os ideais revolucionários, conforme assinala Piotr Stiepanovitch:

Os nossos não são apenas aqueles que degolam e ateiam fogo, e ainda fazem disparos clássicos ou mordem. Gente assim só atrapalha. Não concebo nada sem disciplina. Ora, sou um vigarista e não um socialista, eh, eh! Ouça, tenho uma relação de todos eles: o professor de colégio que ri com as crianças do Deus delas e do berço delas, já é dos nossos. O advogado que defende o assassino culto que por essa condição já é mais evoluído do que suas vítimas e que, para conseguir dinheiro não pode deixar de matar, já é dos nossos. Os colegiais que matam um mujique para experimentar a sensação, são dos nossos. Os jurados que absolvem criminosos a torto a direito são dos nossos. O promotor que treme no tribunal por não ser suficientemente liberal é dos nossos. Os administradores, os escritores, oh, os nossos são muitos, um horror, e eles mesmos não sabem disso!”. (página 409)

Por subterrâneos, esses movimentos tornam-se invisíveis aos olhos comuns, de modo que seus resultados sequer são ligados às causas remotas. Isso foi detectado pelo pensador Olavo de Carvalho:

"Os homens que se gabam de ser práticos -- empresários, políticos, comandantes militares -- são os mais lentos em perceber o sentido prático de certas modas culturais sem teor político demasiado aparente, nas quais não enxergam senão curiosidades acadêmicas ou até exigências morais legítimas, mas cujo efeito, temporariamente obscurecido pela variedade e confusão das palavras que as veiculam, mais cedo ou mais tarde acaba por se manifestar da maneira mais brutal. Invariavelmente, esse efeito é um só: o assassinato político em massa, o genocídio."

Este é um fenômeno que atinge a modernidade com a já citada Revolução Cultural, idealizada por Antonio Gramsci e outros pensadores marxistas, com o fito de abrir caminho pela trincheira cultural a fim de criar as bases para o regime socialista almejado, vez que a tática insurrecional clássica – a revolução comunista - falhou por completo, ao custo de milhões de vidas humanas.

O grupo revolucionário leva a efeito esses ideais e funciona com uma hierarquia rígida que vem a se consolidar com laços de sangue derramado pelo assassinato do dissidente Chatóv, ao argumento de que este terminaria por denunciar a sociedade em sua atuação no incêndio criminoso ateado em um vilarejo de arrabalde. O pacto de sangue fortaleceria a irmandade de modo a criar uma cumplicidade de tal envergadura que jamais um delataria o outro. Essa era a tática usada por outro revolucionário célebre por sua crueldade: Ernesto “Che” Guevara.

Em um pelotão de fuzilamento militar a praxe é que apenas uma das armas dos atiradores esteja municiada, ficando as demais com balas de festim, a fim de que não se saiba de onde partiu o projétil que atingiu o condenado à morte. Guevara aboliu essa regra municiando todas as armas e fazendo com que os artilheiros soubessem de tal fato para criar a cumplicidade dos soldados à sua causa revolucionária e não a traísse sob qualquer hipótese, sob pena de também serem responsabilizados moralmente pelos crimes. Não por acaso Guevara adotava essa prática. É que Piotr Stiepanovitch é a versão romanceada do revolucionário Sergei Netchaiev, co-autor do Catecismo do Revolucionário, obra que serviu de inspiração ao próprio Guevara durante a Revolução Cubana, e que continha o manual de conduta de todo revolucionário.

O cerne e a consequência da mentalidade revolucionária que domina os integrantes da sociedade secreta são metaforizadas na passagem bíblica da “Expulsão dos demônios de Gesara” no livro de Lucas, epigrafada no início da obra, cujo conteúdo é contextualizado aos fatos do romance por Stiepán Trofimovitch em seu leito de morte, na magistral passagem:

“Esses demônios, que saem de um doente e entram nos porcos, são todas as chagas, todos os miasmas, toda a imundice, todos os demônios e demoniozinhos que se acumularam na nossa Rússia grande, doente e querida para todo o sempre, todo o sempre! Sim, a Rússia que eu sempre amei. Mas a grande idéia e a grande vontade descerão do alto como desceram sobre aquele louco endemoniado e sairão todos esses demônios, toda a imundice, toda a nojeira que apodreceu na superfície... e eles mesmos hão de pedir para entrar nos porcos. Aliás, até já entraram, é possível! Somos nós, nós e aqueles, e também Pietrucha... e outros com ele, e é possível que eu seja o primeiro, que esteja à frente, e nós lançaremos, loucos e endemoniados, de um rochedo no ar e todos nos afogaremos, pois para lá é que segue o nosso caminho, porque é só para isso que servimos. Mas o doente haverá de curar-se e ‘se assentará aos pés de Jesus’...”.

Como se vê, ele conclama os corpos dominados pelo espírito revolucionário a uma volta à espiritualidade e àquilo que é realmente grandioso e essencial: Deus. Sem isso, o homem se deixa dominar por qualquer idéia que o leva a agir de forma contrária a sua própria natureza, causando tão somente a derrocada e o desespero – a queda dos porcos no abismo profundo. Mas há esperança, “o doente haverá de curar-se”; a Rússia, e nela projetada a humanidade, há de voltar seu espírito para o Altíssimo, como, por fim, num último suspiro, vaticina:

“Para o homem, muito mais necessário que a própria felicidade é saber e, a cada instante, crer que em algum lugar existe uma felicidade absoluta e serena, para todos e para tudo... Toda a lei da existência humana consiste apenas em que o homem sempre pôde inclinar-se diante do infinitamente grande. Se os homens forem privados do infinitamente grande, não continuarão a viver e morrerão no desespero. O desmedido e o infinito são tão necessários ao homem como o pequeno planeta que ele habita... Meus amigos, todos, todos: viva a Grande Idéia! A eterna, a desmedida Idéia! Todo homem, quem quer que ele seja, precisa inclinar-se diante daquilo que é a Grande Idéia. Até o homem mais tolo tem ao menos a necessidade de algo grande.”


Portanto, mais do que um romance, a obra traz uma mensagem elevada, instando os seus leitores a não se deixarem dominar por idéias sedutoras, promessas de poder e um paraíso terrestre pela ação revolucionária, pois em todas as vezes que alguém se propôs a isso engendrou somente misérias e desgraças, e jamais conseguiu atingir seus objetivos utópicos, como ocorreu com a sociedade secreta comandada pelo revolucionário cruel Piotr Stiepanovitch.

(*) Texto publicado na 5ª edição de O Coyote.