Por Douglas Cavalheiro
Revisado por Camilo Soares
Após a morte de
Sócrates, os seus discípulos, liderados por Antístenes, moveram uma ação contra
Meleto. Segundo Diógenes Laécio Meleto foi exilado ou foi condenado ao
apedrejamento; há ainda autores que especulam que Anito se arrependeu da ação
judicial que moveu contra Sócrates.
A principal questão que perpassou os
discípulos de Sócrates é conhecida como a teodicéia: “se Deus é bom, por que os justos sofrem?”, ou “é prazeroso ter uma vida justa?”. Se um mestre virtuoso como
Sócrates teve um fim trágico e injusto, é prazeroso ser justo, visto que todos
os que são corruptos parecem gozar de uma vida melhor do que as pessoas
virtuosas?
Vista a última questão abordada na Apologia, cabem apenas à Divindade os rumos dos destinos humanos, porque então o destino humano é deixado à deriva. Diante dessas questões, surgiram quatro escolas que lhes irão propor respostas.
Vista a última questão abordada na Apologia, cabem apenas à Divindade os rumos dos destinos humanos, porque então o destino humano é deixado à deriva. Diante dessas questões, surgiram quatro escolas que lhes irão propor respostas.
As Escolas Socráticas: Os Cínicos, os Cirenáicos, os Megáricos
e os Acadêmicos.
Os Cínicos – Fundada por
Antístenes, essa escola focaliza o ensinamento prático da vida humilde e simples.
Antístenes era filho de um ateniense com uma escrava, não tinha título de
cidadão. Ele será o primeiro precursor da filosofia Cínica. Advogava a vida
ascética e eremita, negando todos os prazeres, que levariam a razão à ilusão e ao
engano. Usando da ironia para realizar um choque nos interlocutores, visava
levar uma vida pobre e desacreditava das autoridades sociais. Na física de
Antístenes, a divindade era transcendente e incapaz de refletir suas ações na
realidade. O filósofo desacreditava das riquezas materiais e era casto
sexualmente. Assim como Sócrates, não escreveu seus ensinamentos, deixando
apenas seu exemplo prático de vida. Seu maior discípulo será Diógenes, o Cão, que
vai radicalizar os ensinamentos de seu mestre e viver num barril.
Os Cirenáicos – Arístipo foi
o precursor dessa escola de filosofia antagônica aos Cínicos. Tomando a ética
como central, o prazer é visto como uma consequência boa das atitudes virtuosas,
adaptando as circunstâncias para si e obtendo o controle adequado sobre a
adversidade e a prosperidade. Recebia pagamentos pelos seus ensinamentos e possuía
uma vida sexual ativa, cultivando amantes de ambos os sexos. Segundo Arístipo,
para evitar torna-se escravo dos sentidos é necessário deixar de ser escravo
das circunstâncias e passar a dominá-las. Assim como Antístenes, Arístipo tinha
a concepção de que Deus não interferia na ordem do cosmo. Essa escola vai inspirar
os princípios da Escola Hedonista de Epicuro.
Os Megáricos – Escola
fundada por Euclides de Mégara, concentrava-se no ceticismo, afirmando que Deus
não interferiria na realidade humana. Concentra-se em avaliar o paradoxo “só
sei que nada sei” e formula uma série de paradoxos lógicos que possuíam a
finalidade retórica de demonstrar a inviabilidade do conhecimento absoluto. O
principal deles será conhecido como Paradoxo
de Sorites. Será sob essa inspiração que irão surgir os Estóicos e os Céticos.
A Academia – Escola
fundada por Platão, enxerga os frutos das demais escolas como exageros gerados
pela angústia diante da morte de Sócrates, fazendo deste uma caricatura para
justificar seus pensamentos. Segundo Platão, o prazer da vida virtuosa encontra-se
na razão, por isso ele vai tomando como inspiração os princípios matemáticos
dos pitagóricos, reformulando a cosmologia grega, visando assim evitar a
relativização que acontecia ao seu redor. Sendo esses valores numéricos, as
formas abstratas representam toda a realidade e a essência humana diante de
suas formas de potências passadas. Porém, após a morte de Platão, seu sobrinho
Speusipo passa à liderança da Academia, causando a saída de Aristóteles. Após
oitenta anos, a Academia torna-se um centro do ceticismo absoluto, negando
qualquer forma de conhecimento verdadeiro.
Idade Média
Sócrates: o Santo e o Mártir
Os primeiros padres da Igreja
condenavam as culturas pagãs como elementos contrários à doutrina espiritual do
Cristianismo. Todavia, muitos importantes apologistas demonstravam a intensa
relação da cultura grega com a mensagem cristã. Essa ação será realizada por
São Justino, o Mártir, que uniu Cristandade e Helenismo, evitando uma
condenação generalizada de toda a cultura grega, como se esta fosse apenas uma
forma de gnosticismo e fetichismo pagãos.
É possível apontar diversas semelhanças entre Jesus Cristo e Sócrates. Primeiramente,
ambos tiveram o auge da sua filosofia nos últimos quatro anos da vida. Ambos
tiveram um julgamento injusto, tiveram formação técnica (o pai de um era carpinteiro;
o do outro, escultor) e profundo amor para com sua mãe. A formação intelectual remontava
a uma influência longínqua do Egito. Ambos foram acusados de impiedade aos deuses
e à tradição da sociedade, tinham uma vida material humilde e possuíam uma
missão divina, sendo um como o homem mais sábio e o outro como o Messias. Ambos
eram dotados de ensinamentos semelhantes que se completam por duas formas
distintas, e se comunicavam por parábolas que realizavam analogias com a
realidade.
Os ensinamentos de Jesus resumidos nas máximas “Amar a Deus acima de
tudo” e “Amar ao próximo assim como a si mesmo” são uma maneira positiva de
relatar os ensinamentos socráticos “Conhece-te a ti mesmo” e “Só sei que nada
sei”, enunciados de uma maneira negativa. Nota-se uma complementaridade de
sentido, pois o homem atinge o autoconhecimento, nega seu orgulho e reconhece a
sua ignorância e impotência diante do destino, afirmando a autoridade da Divindade
acima de todas as coisas. Dessa maneira, o ensinamento socrático, ao afirmar o
saber que não se sabe, passa a afirmar a opinião alheia como uma possibilidade
de estar correta, e a sua, falha. Logo, ambos os ensinamentos são
complementares, apesar de Jesus apresentar, de forma positiva, o que se deve
fazer, e Sócrates coloca pelo viés negativo, pelo que não se deve fazer (tal
como o daimon lhe aconselhava).
Contudo, existem algumas diferenças importantes entre ambos. Primeiro,
Sócrates, que foi um mortal, casou, teve filhos, foi herói de guerra e
frequentou a alta sociedade e a política, enquanto que Jesus Cristo era Deus, ressuscitou,
não casou nem muito menos teve filhos, não pertenceu à alta sociedade nem teve
atuação dentro da política de seu tempo. Mas a maior distinção entre ambos é a
necessidade de Sócrates em vincular o método maiêutico ao Estado, simbolizado
como uma mulher, sexualidade da patrona de Atenas. Sócrates tinha como
finalidade não apenas demonstrar um novo método autocrítico para os seus
compatriotas, como pretendia estar dentro do Estado para transformá-lo através
desse feito, inspirando o modelo de “rei-filósofo” descrito por Platão. Já
Jesus Cristo separou seus ensinamentos do Estado, ficou sempre fora da política
e seu maior ensinamento voltado para vida política e social é “dar a César o
que é de César e dar a Deus o que é de Deus”.
As Duas faces de Sócrates na Modernidade
O Humanismo e Iluminismo: Sócrates como o Rebelde
Líder Democrático
O início da modernidade foi marcado por conflitos religiosos gerados
pela reforma protestante e pelo renascimento dos estudos herméticos. Sócrates
tornou-se para essa época uma vítima da intolerância religiosa. Os ceticismos
de muitos pensadores na modernidade afirmavam remontar aos aspectos da ironia
socrática. Dessa forma se iniciou a interpretação de Sócrates como líder tolerante,
com O Elogio da Loucura, de Erasmo de
Roterdã, escrito em 1509, que coloca Sócrates como uma espécie de santo dos
tempos modernos. Nos Ensaios, de
Michel de Montaigne, o ceticismo é radicalizado, substituindo o “Só sei que
nada sei” por uma indagação “Que sais-je?”
(o que eu sei?).
Já no iluminismo, Voltaire vai escrever uma peça teatral chamada Sócrates, em 1778, onde narra a
perseguição dele por um complô de fundamentalistas religiosos contra as
aspirações racionais. Por fim, Kant, no seu livro O que é o Iluminismo, em1784, muda a máxima “Conhece-te a ti mesmo”
para o imperativo de Horácio, Sapere Aude,
(Ouse saber). Retirando o autoconhecimento do sentido teleológico da vida
intelectual, colocando numa maneira de um novo imperativo para o conhecimento
coadunado com a ousadia.
Durante esse primeiro período da Modernidade, a figura histórica de
Sócrates é montada como uma luta constante contra a intolerância religiosa, inspirada
no ceticismo como sendo a única fonte de sua filosofia. Antagônicos às forças
do Estado autoritário e religioso, os intelectuais faziam um paralelo com sua
época diante de sua rebeldia contra o absolutismo dos reis e sua submissão à
autoridade secular da Igreja. Para os intelectuais iluministas, Sócrates
tornou-se um herói da luta popular contra o abuso e intolerância do Estado
religioso contra os seus cidadãos.
Romantismo
Sócrates: O Degenerado subversivo da Ordem social
Na segunda fase da modernidade, a
imagem de Sócrates como líder rebelde toma um caráter pessimista para as
reflexões de Hegel, e principalmente de Nietzsche. Ambos observam o ceticismo,
consequente da ironia socrática, como elemento desagregador e ameaçador para a
ordem social. N’O Crepúsculo dos Ídolos, escrito em 1889, Nietzsche
estuda o Problema de Sócrates, onde o
filósofo é apresentado como fruto consequente da democracia e da decadência da
cultura grega. A miscigenação causada pelo enorme fluxo de diversos povos fez Sócrates
possuir uma terrível feiúra, que, demonstra sua falta de apreço para com a beleza
estética e desejo de morrer, fazendo todo o povo da comunidade ateniense perder
seu sentido de vitalidade em defesa da vida. Inspirado no pensamento
criminalista de Lombroso, Nietzsche demonstra que a má aparência de Sócrates
demonstra a deformidade de seu pensamento, que busca um mundo imaginário como
forma de escapar da realidade. Nesse momento, pode-se notar a aproximação das
críticas de Nietzsche com as de Aristófanes.
Pós-Moderno
O Sócrates despedaçado: a fragmentação e
desordenamento dos ensinamentos
O romantismo, como uma corrente filosófica antagônica ao iluminismo, vai
destronar seus ídolos. Assim, nota-se a forte crítica realizada para Sócrates,
que tinha sido eleito representante da Era das Luzes. Os pensadores posteriores
à crítica do romantismo alemão vão tentar realizar uma reabilitação de Sócrates
como um herói da tolerância. Primeiramente, Kierkegaard vai escrever O conceito da Ironia constantemente
referido a Sócrates, escrito em 1841, com a finalidade de analisar a ironia socrática
em Aristófanes, Xenofonte e Platão. Kierkegaard conclui que a ironia é a característica
socrática por excelência, e os demais conceitos foram enxertos platônicos.
Realiza-se assim um dualismo na imagem socrática: de um lado haveria um “Sócrates
socrático”, fidedigno à imagem da realidade, e de outro lado um “Sócrates platônico”,
criado por Platão para justificar as suas ideias. Esse pensamento maniqueísta
sobre Sócrates vai ser hegemônico nos dias atuais. Posteriormente, Popper
escreve A Sociedade Aberta e seus Inimigos,
em 1945, colocando Sócrates como o líder da democracia, em cuja atitude crítica
consiste a manutenção do regime democrático e aberto; e Platão como o discípulo
que corrompeu suas ideias, teorizando um modelo cosmológico baseado na
astrologia que gerou o determinismo da Sociedade Fechada. Os intelectuais da
escola de Frankfurt também vão colocar a ironia socrática como uma das principais
características do método sobre a crítica social, capaz de gerar a emancipação individual. Já para Nicolas Grimaldi, no seu livro Sócrates O Feiticeiro, escrito em 2004,
é possível realizar aproximação do pensamento de Sócrates com as religiões de
mistério da sua época. O ceticismo socrático é um disfarce mágico das práticas exotéricas
(NR: ou seriam esotéricas?) da Antiguidade.
Conclusão: O Esquecimento do Projeto Socrático
Criações de ícones abstratos e ideológicos, e o esquecimento da
totalidade do ser do filosofo de Sócrates, fizeram com que fossem apenas
imagens caricaturais. Seja de um rebelde contra o autoritarismo do Estado, seja
de um criador da desordem que gera outro autoritarismo, essas imagens são contraditórias.
Os iluministas apresentaram Sócrates como líder da democracia, sistema político
que sempre foi alvo de suas críticas e que o levou à morte. Apesar de alguns contra-argumentarem
dizendo que essas críticas provêm de Platão e não de Sócrates, essa ideia
também é paradigmática, haja vista que Sócrates também criticou os regimes que
sucederam a democracia (como a aristocrata tirânica dos trinta). A ambiguidade
de Sócrates de ter sobrevivido tanto na tirania como na democracia, fez das
leituras políticas sobre qual sistema político Sócrates seria partidário algo
completamente inútil e caricatural, esquecendo-se seu verdadeiro ensinamento.
No caso da Idade Média, é
importante apontar que, apesar das semelhanças entre Sócrates e Jesus Cristo. é
também necessário apresentar as distinções fundamentais entre ambos, senão
ambos seriam a mesma pessoa. A consequente divisão de “dois Sócrates”, como um maniqueísmo
socrático é a nova heresia, mesmo crime herético que fizeram com Cristo, pois
toda reflexão de Platão é consequente dos seus primeiros diálogos, que nortearam
os demais. Todas as distorções da imagem socrática ao longo da história servem
para retirar a base de compreender Cristo, visto que Sócrates foi a entrada
para o mundo cristão. A compreensão do projeto socrático como é exposto pelo
professor Olavo de Carvalho deve ser feita na sua totalidade. As imagens distorcidas
de Sócrates geradas pela maioria das escolas que o sucederam, depois de sua
morte, marcam semelhanças com muitas conclusões retiradas de alguns autores na
modernidade. É, portanto, necessário retornar ao projeto socrático, deixando de
lado os estereótipos.
Este é o terceiro texto da série de três textos sobre o livro Apologia de Sócrates, que está sendo elaborado a cada reunião de atividade do GAM.