A Historiografia Socrática: As Diversas Imagens de Sócrates à Luz da Temporalidade (Parte 3)

Por Douglas Cavalheiro
Revisado por Camilo Soares




Após a morte de Sócrates, os seus discípulos, liderados por Antístenes, moveram uma ação contra Meleto. Segundo Diógenes Laécio Meleto foi exilado ou foi condenado ao apedrejamento; há ainda autores que especulam que Anito se arrependeu da ação judicial que moveu contra Sócrates.

A principal questão que perpassou os discípulos de Sócrates é conhecida como a teodicéia: “se Deus é bom, por que os justos sofrem?”, ou “é prazeroso ter uma vida justa?”. Se um mestre virtuoso como Sócrates teve um fim trágico e injusto, é prazeroso ser justo, visto que todos os que são corruptos parecem gozar de uma vida melhor do que as pessoas virtuosas? 

Vista a última questão abordada na Apologia, cabem apenas à Divindade os rumos dos destinos humanos, porque então o destino humano é deixado à deriva. Diante dessas questões, surgiram quatro escolas que lhes irão propor respostas.

As Escolas Socráticas: Os Cínicos, os Cirenáicos, os Megáricos e os Acadêmicos.

Os Cínicos – Fundada por Antístenes, essa escola focaliza o ensinamento prático da vida humilde e simples. Antístenes era filho de um ateniense com uma escrava, não tinha título de cidadão. Ele será o primeiro precursor da filosofia Cínica. Advogava a vida ascética e eremita, negando todos os prazeres, que levariam a razão à ilusão e ao engano. Usando da ironia para realizar um choque nos interlocutores, visava levar uma vida pobre e desacreditava das autoridades sociais. Na física de Antístenes, a divindade era transcendente e incapaz de refletir suas ações na realidade. O filósofo desacreditava das riquezas materiais e era casto sexualmente. Assim como Sócrates, não escreveu seus ensinamentos, deixando apenas seu exemplo prático de vida. Seu maior discípulo será Diógenes, o Cão, que vai radicalizar os ensinamentos de seu mestre e viver num barril.

Os Cirenáicos – Arístipo foi o precursor dessa escola de filosofia antagônica aos Cínicos. Tomando a ética como central, o prazer é visto como uma consequência boa das atitudes virtuosas, adaptando as circunstâncias para si e obtendo o controle adequado sobre a adversidade e a prosperidade. Recebia pagamentos pelos seus ensinamentos e possuía uma vida sexual ativa, cultivando amantes de ambos os sexos. Segundo Arístipo, para evitar torna-se escravo dos sentidos é necessário deixar de ser escravo das circunstâncias e passar a dominá-las. Assim como Antístenes, Arístipo tinha a concepção de que Deus não interferia na ordem do cosmo. Essa escola vai inspirar os princípios da Escola Hedonista de Epicuro.

Os Megáricos – Escola fundada por Euclides de Mégara, concentrava-se no ceticismo, afirmando que Deus não interferiria na realidade humana. Concentra-se em avaliar o paradoxo “só sei que nada sei” e formula uma série de paradoxos lógicos que possuíam a finalidade retórica de demonstrar a inviabilidade do conhecimento absoluto. O principal deles será conhecido como Paradoxo de Sorites. Será sob essa inspiração que irão surgir os Estóicos e os Céticos.

A Academia – Escola fundada por Platão, enxerga os frutos das demais escolas como exageros gerados pela angústia diante da morte de Sócrates, fazendo deste uma caricatura para justificar seus pensamentos. Segundo Platão, o prazer da vida virtuosa encontra-se na razão, por isso ele vai tomando como inspiração os princípios matemáticos dos pitagóricos, reformulando a cosmologia grega, visando assim evitar a relativização que acontecia ao seu redor. Sendo esses valores numéricos, as formas abstratas representam toda a realidade e a essência humana diante de suas formas de potências passadas. Porém, após a morte de Platão, seu sobrinho Speusipo passa à liderança da Academia, causando a saída de Aristóteles. Após oitenta anos, a Academia torna-se um centro do ceticismo absoluto, negando qualquer forma de conhecimento verdadeiro.

Idade Média

Sócrates: o Santo e o Mártir

Os primeiros padres da Igreja condenavam as culturas pagãs como elementos contrários à doutrina espiritual do Cristianismo. Todavia, muitos importantes apologistas demonstravam a intensa relação da cultura grega com a mensagem cristã. Essa ação será realizada por São Justino, o Mártir, que uniu Cristandade e Helenismo, evitando uma condenação generalizada de toda a cultura grega, como se esta fosse apenas uma forma de gnosticismo e fetichismo pagãos.

É possível apontar diversas semelhanças entre Jesus Cristo e Sócrates. Primeiramente, ambos tiveram o auge da sua filosofia nos últimos quatro anos da vida. Ambos tiveram um julgamento injusto, tiveram formação técnica (o pai de um era carpinteiro; o do outro, escultor) e profundo amor para com sua mãe. A formação intelectual remontava a uma influência longínqua do Egito. Ambos foram acusados de impiedade aos deuses e à tradição da sociedade, tinham uma vida material humilde e possuíam uma missão divina, sendo um como o homem mais sábio e o outro como o Messias. Ambos eram dotados de ensinamentos semelhantes que se completam por duas formas distintas, e se comunicavam por parábolas que realizavam analogias com a realidade.

Os ensinamentos de Jesus resumidos nas máximas “Amar a Deus acima de tudo” e “Amar ao próximo assim como a si mesmo” são uma maneira positiva de relatar os ensinamentos socráticos “Conhece-te a ti mesmo” e “Só sei que nada sei”, enunciados de uma maneira negativa. Nota-se uma complementaridade de sentido, pois o homem atinge o autoconhecimento, nega seu orgulho e reconhece a sua ignorância e impotência diante do destino, afirmando a autoridade da Divindade acima de todas as coisas. Dessa maneira, o ensinamento socrático, ao afirmar o saber que não se sabe, passa a afirmar a opinião alheia como uma possibilidade de estar correta, e a sua, falha. Logo, ambos os ensinamentos são complementares, apesar de Jesus apresentar, de forma positiva, o que se deve fazer, e Sócrates coloca pelo viés negativo, pelo que não se deve fazer (tal como o daimon lhe aconselhava).

Contudo, existem algumas diferenças importantes entre ambos. Primeiro, Sócrates, que foi um mortal, casou, teve filhos, foi herói de guerra e frequentou a alta sociedade e a política, enquanto que Jesus Cristo era Deus, ressuscitou, não casou nem muito menos teve filhos, não pertenceu à alta sociedade nem teve atuação dentro da política de seu tempo. Mas a maior distinção entre ambos é a necessidade de Sócrates em vincular o método maiêutico ao Estado, simbolizado como uma mulher, sexualidade da patrona de Atenas. Sócrates tinha como finalidade não apenas demonstrar um novo método autocrítico para os seus compatriotas, como pretendia estar dentro do Estado para transformá-lo através desse feito, inspirando o modelo de “rei-filósofo” descrito por Platão. Já Jesus Cristo separou seus ensinamentos do Estado, ficou sempre fora da política e seu maior ensinamento voltado para vida política e social é “dar a César o que é de César e dar a Deus o que é de Deus”.

As Duas faces de Sócrates na Modernidade

O Humanismo e Iluminismo: Sócrates como o Rebelde Líder Democrático

O início da modernidade foi marcado por conflitos religiosos gerados pela reforma protestante e pelo renascimento dos estudos herméticos. Sócrates tornou-se para essa época uma vítima da intolerância religiosa. Os ceticismos de muitos pensadores na modernidade afirmavam remontar aos aspectos da ironia socrática. Dessa forma se iniciou a interpretação de Sócrates como líder tolerante, com O Elogio da Loucura, de Erasmo de Roterdã, escrito em 1509, que coloca Sócrates como uma espécie de santo dos tempos modernos. Nos Ensaios, de Michel de Montaigne, o ceticismo é radicalizado, substituindo o “Só sei que nada sei” por uma indagação “Que sais-je?” (o que eu sei?).

Já no iluminismo, Voltaire vai escrever uma peça teatral chamada Sócrates, em 1778, onde narra a perseguição dele por um complô de fundamentalistas religiosos contra as aspirações racionais. Por fim, Kant, no seu livro O que é o Iluminismo, em1784, muda a máxima “Conhece-te a ti mesmo” para o imperativo de Horácio, Sapere Aude, (Ouse saber). Retirando o autoconhecimento do sentido teleológico da vida intelectual, colocando numa maneira de um novo imperativo para o conhecimento coadunado com a ousadia.

Durante esse primeiro período da Modernidade, a figura histórica de Sócrates é montada como uma luta constante contra a intolerância religiosa, inspirada no ceticismo como sendo a única fonte de sua filosofia. Antagônicos às forças do Estado autoritário e religioso, os intelectuais faziam um paralelo com sua época diante de sua rebeldia contra o absolutismo dos reis e sua submissão à autoridade secular da Igreja. Para os intelectuais iluministas, Sócrates tornou-se um herói da luta popular contra o abuso e intolerância do Estado religioso contra os seus cidadãos.

Romantismo

Sócrates: O Degenerado subversivo da Ordem social

Na segunda fase da modernidade, a imagem de Sócrates como líder rebelde toma um caráter pessimista para as reflexões de Hegel, e principalmente de Nietzsche. Ambos observam o ceticismo, consequente da ironia socrática, como elemento desagregador e ameaçador para a ordem social. N’O Crepúsculo dos Ídolos, escrito em 1889, Nietzsche estuda o Problema de Sócrates, onde o filósofo é apresentado como fruto consequente da democracia e da decadência da cultura grega. A miscigenação causada pelo enorme fluxo de diversos povos fez Sócrates possuir uma terrível feiúra, que, demonstra sua falta de apreço para com a beleza estética e desejo de morrer, fazendo todo o povo da comunidade ateniense perder seu sentido de vitalidade em defesa da vida. Inspirado no pensamento criminalista de Lombroso, Nietzsche demonstra que a má aparência de Sócrates demonstra a deformidade de seu pensamento, que busca um mundo imaginário como forma de escapar da realidade. Nesse momento, pode-se notar a aproximação das críticas de Nietzsche com as de Aristófanes.

Pós-Moderno

O Sócrates despedaçado: a fragmentação e desordenamento dos ensinamentos

O romantismo, como uma corrente filosófica antagônica ao iluminismo, vai destronar seus ídolos. Assim, nota-se a forte crítica realizada para Sócrates, que tinha sido eleito representante da Era das Luzes. Os pensadores posteriores à crítica do romantismo alemão vão tentar realizar uma reabilitação de Sócrates como um herói da tolerância. Primeiramente, Kierkegaard vai escrever O conceito da Ironia constantemente referido a Sócrates, escrito em 1841, com a finalidade de analisar a ironia socrática em Aristófanes, Xenofonte e Platão. Kierkegaard conclui que a ironia é a característica socrática por excelência, e os demais conceitos foram enxertos platônicos. Realiza-se assim um dualismo na imagem socrática: de um lado haveria um “Sócrates socrático”, fidedigno à imagem da realidade, e de outro lado um “Sócrates platônico”, criado por Platão para justificar as suas ideias. Esse pensamento maniqueísta sobre Sócrates vai ser hegemônico nos dias atuais. Posteriormente, Popper escreve A Sociedade Aberta e seus Inimigos, em 1945, colocando Sócrates como o líder da democracia, em cuja atitude crítica consiste a manutenção do regime democrático e aberto; e Platão como o discípulo que corrompeu suas ideias, teorizando um modelo cosmológico baseado na astrologia que gerou o determinismo da Sociedade Fechada. Os intelectuais da escola de Frankfurt também vão colocar a ironia socrática como uma das principais características do método sobre a crítica social, capaz de gerar a emancipação individual.  Já para Nicolas Grimaldi, no seu livro Sócrates O Feiticeiro, escrito em 2004, é possível realizar aproximação do pensamento de Sócrates com as religiões de mistério da sua época. O ceticismo socrático é um disfarce mágico das práticas exotéricas (NR: ou seriam esotéricas?) da Antiguidade.

Conclusão: O Esquecimento do Projeto Socrático

Criações de ícones abstratos e ideológicos, e o esquecimento da totalidade do ser do filosofo de Sócrates, fizeram com que fossem apenas imagens caricaturais. Seja de um rebelde contra o autoritarismo do Estado, seja de um criador da desordem que gera outro autoritarismo, essas imagens são contraditórias. Os iluministas apresentaram Sócrates como líder da democracia, sistema político que sempre foi alvo de suas críticas e que o levou à morte. Apesar de alguns contra-argumentarem dizendo que essas críticas provêm de Platão e não de Sócrates, essa ideia também é paradigmática, haja vista que Sócrates também criticou os regimes que sucederam a democracia (como a aristocrata tirânica dos trinta). A ambiguidade de Sócrates de ter sobrevivido tanto na tirania como na democracia, fez das leituras políticas sobre qual sistema político Sócrates seria partidário algo completamente inútil e caricatural, esquecendo-se seu verdadeiro ensinamento.

No caso da Idade Média, é importante apontar que, apesar das semelhanças entre Sócrates e Jesus Cristo. é também necessário apresentar as distinções fundamentais entre ambos, senão ambos seriam a mesma pessoa. A consequente divisão de “dois Sócrates”, como um maniqueísmo socrático é a nova heresia, mesmo crime herético que fizeram com Cristo, pois toda reflexão de Platão é consequente dos seus primeiros diálogos, que nortearam os demais. Todas as distorções da imagem socrática ao longo da história servem para retirar a base de compreender Cristo, visto que Sócrates foi a entrada para o mundo cristão. A compreensão do projeto socrático como é exposto pelo professor Olavo de Carvalho deve ser feita na sua totalidade. As imagens distorcidas de Sócrates geradas pela maioria das escolas que o sucederam, depois de sua morte, marcam semelhanças com muitas conclusões retiradas de alguns autores na modernidade. É, portanto, necessário retornar ao projeto socrático, deixando de lado os estereótipos.

Este é o terceiro texto da série de três textos sobre o livro Apologia de Sócrates, que está sendo elaborado a cada reunião de atividade do GAM.

Niilismo, Raiz de Todos os Males do Homem de Hoje

Por Arthur Dutra


Dentro dos esforços do Grupo de Estudo André de Albuquerque Maranhão – GAM em se debruçar sobre temas que evoquem as grandes questões universais que assolam a humanidade na contemporaneidade, surge como objeto de estudo o niilismo, considerado por Giovanni Reale, filósofo italiano, como a “raiz de todos os males do homem de hoje”, conforme enuncia o prólogo do seu livro “O saber dos antigos”. Na citada obra, Reale pretende fazer um apanhado daquilo que chamou de “máscaras do niilismo”, ou seja, os desdobramentos ou formas de manifestação que este niilismo assume quando alcança o estágio mais avançado na história. Antes de adentrar no exame da cada uma das máscaras, listadas de maneira exemplificativa a fim de confrontá-las com o antídoto oferecido pelos antigos, Reale discorre sobre o niilismo, tendo por fundamento as lições deixadas por aquele que teria sido seu profeta: Friederich Nietzsche.

Tido como um fenômeno sem origem definida, o niilismo terminou por ser enunciado por Nietzsche em “Fragmentos póstumos”, como sendo “a falta do fim; falta a resposta ao ‘porquê?`; o que significa niilismo? – que os valores supremos se desvalorizam”. Muito embora tenha sido Nietzsche o profeta no niilismo, o homem que, com sua poderosa inteligência, o tenha colocado em termos teóricos e andado com ele de braços dados como algo positivo, é preciso reconhecer que outros antes dele cuidaram do fenômeno; talvez não de forma filosófica como Nietzsche, mas como algo que acompanha o ser humano em seu conflito consigo mesmo e com a ordem cósmica em que envolto. Foi o que nos legou o grande escritor russo Fiodór Dostoievski, que foi, certamente, o homem cuja obra inspirou os impulsos do filósofo alemão.

Embora haja menções romanescas no livro “Memórias do subsolo”, foi com “Crime e Castigo” que Doistoiévski colocou o niilismo inserido numa vida, mesmo que fictícia, e mostrou de onde ele vem e para onde ele pode levar o homem que se deixa dominar pelos seus desígnios. Raskolnikov é o homem niilista por excelência. É o homem que se depara com sua própria mediocridade e não se conforta com ela, não deixa que ela o amordace no marasmo, não permite que ela seja a reitora de sua vida que se pretende tão luminosa, tão acima do que o homem comum tem como normal e moral. Não! O homem niilista de Dostoiévski quer superar toda a normalidade, toda a moralidade, mas para isso ele precisa superar a si mesmo, visto que ele é, sim, um legítimo representante desta mediania que o puxa para o solo, sem o colocar nem abaixo da linha do horizonte, nem acima do firmamento. É esta posição que o angustia, e ele percebe que está preso a ela graças a todo o conjunto de formulações e normas que regem uma sociedade. A moral, para ele, é um entrave; a lei é um anátema para seus grandiosos planos. É preciso superá-los o mais rápido possível. É preciso que ele seja, em primeiro lugar, capaz não só de querer isto, mas de fazê-lo sem qualquer remorso. Eis o que ele diz:

“A categoria dos indivíduos extraordinários] é composta por aqueles que infringem as leis. Os crimes destes são, naturalmente, relativos (...) e se necessitarem, para bem da sua idéia, de saltar ainda que seja por cima de um cadáver, por cima do sangue, então eles, no seu íntimo, na sua consciência, podem, em minha opinião, conceder a si próprios a autorização para saltarem por cima do sangue, atendendo unicamente à idéia e ao seu conteúdo.”

Então ele parte, imbuído deste alto propósito, para deixar de ser este homem amarrado pelo cabresto moral para tornar-se um ser elevado, um Napoleão coroado, que desenha com a ponta de sua espada os caminhos do próprio destino, deixando marcas não só na História, mas na própria ordem do cosmos. Mas sua mediocridade é tão grande que o máximo que ele consegue pensar em fazer para colocar-se acima é matar uma velhinha judia. O respeito pela vida humana, tido como um valor universal, nada mais vale: isto é o niilismo.

Foi este gancho, esta ideia que certamente abateu-se sobre o gênio tresloucado de Nietzsche. Foi a partir dele que sua mente pôde desenvolver toda uma teia intrincada de poderosas formulações, repletas de estilo literário, para apresentar o niilismo o futuro inevitável da humanidade nos séculos que o seguiriam.

“O homem moderno crê experimentalmente ora neste, ora naquele valor, para depois abandoná-lo; o círculo de valores superados e abandonados está sempre se ampliando”, diz Nietzsche, mais uma vez em Fragmentos póstumos, ao constatar que a história do homem é um constante abandonar de valores, seguido de um igualmente constante adotar de outros. Essa seria a própria dinâmica da História, a sua lógica interna, assim como a luta de classes o é para seu conterrâneo Karl Marx.

Crê Nietsche que de tanto abandonar valores, o homem passa a descrer deles, visto que eles não se mostram perenes e fortes o suficiente para permanecerem. Daí porque a cada tempo que passa os valores eleitos são um dia abandonados com mais facilidade, em menos tempo, culminando no abandono geral dos valores, ou na sua brutal desvalorização. Esta é a obra do niilismo em seu estágio ainda incompleto, e foi neste ponto da História que ele pegou um Nietzsche impregnado de pessimismo e de resistência ao Deus cristão. Foi isto que ele percebeu, tanto nele mesmo quanto em personagens como Raskólnikov, quando disse que “o que virá, o que não poderá ver de outra forma: o advento do niilismo”. Era, portanto, um movimento que já estava plenamente em marcha, vindo de longe, trazendo uma carga pesada em suas costas e que iria, com sua massa avolumada, terminar por esmagar o homem que não soubesse, como ele pensava saber, lidar com esta força da natureza.

Ele se coloca, portanto, como um profeta do que viria, pois percebeu que viria. Mas não só como profeta. Nietzsche foi também um apologeta do niilismo quando sentenciou, não apenas como descrição de uma realidade, que Deus, o maior dos valores a que se apega o homem, estava morto. Uma espécie de cansaço abate o homem que não confia mais nos valores; um marasmo, um fastio dos valores e se seu peso nas vidas sofridas derrearam-lhe as costas. Deus, do alto da sua transcendência, foi – ou deveria ser – morto para que este mesmo homem, soterrado numa solidão, pudesse emergir, liberto das amarras dos valores pré-estabelecidos, para fiar-se pelos próprios valores e ser o senhor do seu destino para fazê-lo grande e progressista, aumentando a cada dia a sua força para ser mais e mais, para ser, pela insaciável vontade de poder, um super-homem. Assim, e só assim, haveria a superação do niilismo, pois o homem, e somente ele, poderia atribuir o valor àquilo que o auxiliasse na concretização da sua vontade de poder. Todo o resto, as construções que fossem alheias aos seus planos de crescimento, seriam relativas e, portanto, inúteis.

Raskonilkov tinha esta visão e acreditava, ainda antes da formulação nietzscheana, que poderia alcançar este patamar de libertação. Tinha apenas que testar sua disposição de ir até as últimas consequências, de chegar até o topo dos valores para visualizá-los todos de cima. Assim ele fez. Mas aqui encontramos a fundamental diferença entre o romancista cristão ortodoxo, que viu o niilismo como uma desgraça para o homem, e o filósofo ateu que queria fazer deste fenômeno algo redentor, que matasse o Deus cristão e o tirasse do seu lugar transcendente, e com ele a própria transcendência, pois é disto que se trata o ateísmo de Nietzsche, conforme assevera Martin Heidegger no ensaio filosófico “A sentença nietzschiana ‘Deus está morto'”:

“...a expressão ‘Deus está morto’ significa que o mundo ultra-sensível não tem força real, não envolve nenhum tipo de vida. A metafísica, ou seja – para Nietzsche – a filosofia ocidental entendida como platonismo, está no fim. Nietzsche considera sua filosofia como a contracorrente da metafísica, isto é, para ele, do platonismo”.

A sentença de Nietzsche, portanto, vai muito além do mero ateísmo. É ela a própria essência do niilismo, que é algo infinitamente maior e mais poderoso que a descrença em Deus, pois mesmo o ateu comum pode reconhecer outros valores elevados, mas o homem tomado pela descrença geral nos valores não consegue enxergar mais nada que lhe atraía como a força do sopro divino.

No romance doistevskiano, o personagem não logra alcançar o nível de independência que imaginava. Ou seja, na ânsia de tornar-se um tipo como Napoleão Bonaparte, a quem ele considerava acima do bem e do mal e dono do seu próprio destino, Raskolnikov encontra a desgraça e o remorso, só curados por um sincero e obsequioso pedido de perdão, que vai formulado em palavras para os ouvidos de uma prostituta, mas que tem como destinatário final aquele Ser Supremo que haveria de ser morto por Nietzsche: Deus. O niilismo como filosofia de vida, portanto, devora seus filhos e, no fim das contas, só os levam para dois lugares: o cemitério, pelo suicídio, ou para o regaço de Deus, através do perdão.

Nietzsche não compreendeu isso e pagou com a própria vida para tentar provar o contrário, tal como já previsto por Dostoievski não só em “Crime e Castigo”, mas também nos romances “Os Demônios” e “Os Irmãos Karámazov”, histórias repletas de personagens suicidas e loucos niilistas. Isto porque quando se perde o valor dos princípios superiores, que são eternos, o próprio espírito se enfraquece, passa a não mais vislumbrar nada elevado para buscar como sua força natural. Ele cansa e se abate, distraindo-se com miudezas e com o nada que encontra vagando por um mundo que a nada mais dá valor. Termina o homem sozinho com suas aspirações megalômanas, chocando-se com os outros homens em conflitos individuais insolúveis, pois não há mais entre eles um princípio comum harmonizador, pacificador, que esteja colocado num patamar superior de hierarquia, mesmo porque a própria hierarquia dos valores e das coisas também deixou de existir. A horizontalidade niilista, repleta de imanência, destrói a relação do homem com Deus, que é essencial e fundamentalmente vertical, com o homem sempre abaixo, bem abaixo, pois deve estar de joelhos. Com o “Deus está morto”, a verticalidade perde a primazia e até deixa de existir, pois teve a conexão cortada pelo niilismo que, antes de dar o arremate final, passou uma borracha no ponto superior desta ligação. A própria horizontalidade virou um caos, pois as linhas são multipartidas pela infinidade de golpes que as fazem traços soltos num espaço que não tem colunas que as juntem e as levem até o ponto aglutinador que fica no alto, no valor primeiro e último da divindade.

Esta é a obra do niilismo. Este é o fenômeno que deu origem a toda uma plêiade de desdobramentos como o relativismo, o pessimismo, a depressão e o aprisionamento do ser humano num plano de considerações delirantes que o ludibriam e o fazem pensar que pode ser, sozinho, o artífice de seu destino, sem ter que prestar contas a mais ninguém a não ser a sua egoísta vontade de poder. Mas este profeta, este super-homem, com sua sanha de cruzar os sete mares com a redenção do gênero humano, naufragou na loucura e na demência. Desavisado, testou sua força, como o fez Raskonikov, e encontrou seu destino, que foi, como nos noticia sua própria história, terrivelmente melancólico e sofrido.

É preciso, portanto, não descurar desta que é uma força destrutiva, que nada constrói no lugar da demolição, deixando apenas a confusão e o caos onde havia ordem ou resquícios dela. Urge conhecê-la em todas as suas manifestações e buscar o remédio com bravura.

Os antigos, com Sócrates, tinham como dever destruir os sofismas, através do confronto a dialético, fim de arrancar o véu da mentira da frente do discurso que afastava o homem antigo da verdade. Mas, uma vez revelado o ardil retórico, dava-se o passo fundamental: o parto da verdade, que impregna a alma e a faz renascer dos escombros da mentira para emergir rumo ao Alto. Este é o movimento fundamental do crescimento, e é esta a razão pela qual Reale recomenda combater o niilismo com o saber dos antigos, notadamente dos gregos, fiando-se no resgate da maiêutica socrática e no zelo preferencial com o espírito como formas de neutralizar esse voo solo do tresloucado e desesperado super-homem niilista nietzschiano.

O Processo da Maiêutica: As Etapas Causais da Intelectualidade (Parte 2)

Por Douglas Cavalheiro
Revisão por Camilo Soares


Os Últimos serão os Primeiros: O método da maiêutica socrática à luz da temporalidade Histórica



A Apologia compõe a primeira tetralogia de diálogos platônicos, escrita, talvez, no mesmo ano da condenação de Sócrates, ocorrida em 399 a.C. Dentro da obra de Platão existem inúmeros referenciais históricos de acontecimentos, datas e pessoas de existência verídica. Todavia, a forma temporal obedecida pela sua obra é diferente do método histórico que estava se formando na mesma época por Hecateu de Mileto e Heródoto. Ao contrário da historiografia que visa evitar o anacronismo, tomando os acontecimentos num sequenciamento desencadeado a partir de um principio até um fim, de forma linear, o método filosófico segue uma forma circular. Ou seja, como um círculo, é caracterizado por não ter um começo nem um fim, mas sim uma unidade de superfície curva contínua que possui pontos equidistantes de qualquer outro ponto. Em outras palavras, o processo filosófico encontra-se numa atemporalidade, pois o seu percurso de desenvolvimento tem um crescimento contínuo em ciclos ad infinintum

Quando Platão começou a escrever seus primeiros trabalhos, ele tinha por volta de 25 anos. Já Sócrates, com 70 anos, estava no auge da sua maturidade intelectual. À medida que Platão escreve os demais diálogos que sucedem a Apologia, ele remete aos acontecimentos passados da vida de Sócrates, remontando até mesmo à juventude de seu mestre. Portanto, os primeiros trabalhos de Platão demonstram a finalidade como uma forma de projeto intelectual que sua vida tem por seguir, sendo função dos trabalhos subsequentes de prestarem suporte às consequências geradas à luz do projeto socrático, apresentado nos primeiros diálogos da primeira tetralogia de livros. Dessa maneira, todos os últimos trabalhos são apenas uma continuidade do que foi apresentado nos primeiros trabalhos.

Os maiores estudiosos da filosofia antiga atribuem a autoria do método maiêutico a Sócrates, diferentemente dos excertos platônicos das demais obras. A palavra “maiêutica” provém do grego e significa “dar à luz”: Sócrates se põe na posição de um obstetra (do latim: ao lado), como uma parteira que auxilia uma gestante. A associação da atitude intelectual com a polaridade feminina tem um enorme peso quando é colocado um detalhe histórico: todos os seus discípulos e interlocutores eram homens. Sócrates afirma ter tido ensinamentos com Aspásia, sobre retórica, e com uma sacerdotisa chamada Diotima de Mantineia, sobre o amor.

Ao colocar-se como amante da filosofia, Sócrates coloca-se como um ser passivo, um simples meio pelo qual a sabedoria se realiza, tal como ocorre no Oráculo em Delfos, onde a sacerdotisa precisa excluir o ego para ser possessa pelo deus Apolo. Sócrates tinha a finalidade de estimular o comportamento passivo da humildade, que lhe permitiria libertar sua consciência das falsas opiniões, passando a conhecer a si mesmo, gerando o êxtase: o nascimento da alma. Como um parteiro, Sócrates atenta para o comportamento meramente auxiliar de sua atividade de retirar as falsas opiniões, buscando atingir, sobretudo a consciência através do logos.

O logos é uma palavra muito utilizada no mundo antigo, significando ao mesmo tempo “palavra” e “razão”. Esse sentido encontra-se também cifrado no título da obra Apologia, que antecipa a mensagem do diálogo, codificada em apenas um vocábulo. Etimologicamente, Apologeisthai significa apo + logos, ou seja, "para a palavra" "em direção à razão", "em sentido do logos"; “autodiscurso”; ou discurso sobre si. O ponto máximo da filosofia nasce com uma defesa, em outras palavras, um "contra-ataque". É um máximo de elemento de uma reflexão crítica, onde a razão tem que ultrapassar seus limites e criticar-se completamente. Tal como na paixão de Cristo, Sócrates necessita abandonar o máximo de suas falsas opiniões sobre si, sendo movido por sua força de guerreiro na luta pela sobrevivência para evitar a pena de morte. Sócrates vai experimentar a total negação de si para atingir a busca de sua verdadeira forma, atingindo como êxito final o conhecimento de que desconhece. O paradigma que fisicamente é impossível (como o Barão de Münchhausen que busca puxar a si pelos cabelos para sair da areia movediça), na racionalidade encontra sua possibilidade, onde a razão segundo sua própria natureza pode realizar uma autocrítica.

O julgamento de Sócrates representa um verdadeiro convite à filosofia, no momento em que o parteiro de almas tem que realizar o seu maior feito: parir-se a si mesmo. É esse diálogo que contém todas as etapas que Sócrates realizou até definitivamente compreender o verdadeiro sentido da profecia do Oráculo de Delfos de que era “o homem mais sábio”.

Muitos estudiosos têm criado uma imagem maniqueísta de Sócrates, onde haveria uma imagem “socrática” de Sócrates e uma forma de “platônica” de Sócrates. O primeiro Sócrates teria seu método maiêutico característico apenas pela ironia e por levar seus oponentes à contradição lógica, e o “Sócrates platônico” seria o criador da teoria das formas. O uso da ironia é o instrumento retórico de Sócrates, que possui a finalidade de ir retirando as falsas opiniões da pessoa até que ela se conheça. A imagem puramente irônica de Sócrates vai contradizer-se com a sua própria imagem de parteira, pois, para ser como tal é necessário que haja um nascimento no final do processo. Um processo apenas voltado para ironia é totalmente destruído, seria como se houvesse um total sofrimento das dores do parto, mas, no fim, não nascesse ninguém (quase um caso clínico de gravidez psicológica). Dessa forma o método seria incoerente, logo, a maiêutica não pode ser apenas contida na ironia, mas essa é uma das quatro etapas que se seguem no diálogo.



As Etapas Causais da Intelectualidade



Primeira Etapa: O mapeamento histórico e a análise do contexto


O primeiro passo da argumentação de Sócrates é a recapitulação do status quaestionis. Nesse momento, ele realiza uma leitura cronológica sobre os elementos difamatórios que tornaram sua imagem publica uma caricatura, por causa da peça de teatro “As Nuvens”, de Aristófanes. Sócrates atenta para a primeira injustiça do tribunal: a quantidade de tempo de sua difamação não é proporcional à quantidade de tempo que ele possui para sua defesa. Lembrando que Sócrates tinha por volta de 70 anos de idade e a cidade havia passado por muitas guerras, praticamente toda a nova geração da cidade não o conhecia pelos seus feitos pessoais, mas pelas imagens caricaturais das conversas urbanas.


Segunda Etapa: Descrição Formal das Acusações e das relações sociais com os seus Acusadores


Sócrates descreve as três acusações realizadas contra ele correspondentes ao logos, a linguagem: o Sofista, o Poeta e o Político. O sofista possui o dom da retórica, de gerar paixões entre os interlocutores, induzindo ações sociais. O poeta, diferentemente dos atuais, tinha o papel de transmitir a tradição oral da genealogia dos deuses, das histórias homéricas, através da peregrinação. Seria como o papel do missionário atualmente. Caberia a ele a função de organizar a memória do povo através da linguagem, sendo o papel atual da gramática. Ao terceiro, o político, cabe a função de gerenciar e arquitetar as funções da comunidade, sendo dotado de raciocínio lógico.

Cada uma das acusações corresponde aos seus causadores: Licon era um sofista, acusava Sócrates de Não crer nos Deuses da Cidade, um atentado contra os costumes dos cidadãos. Meleto, o poeta, acusava Sócrates de Pregar Novos Deuses (o Daiomon que Sócrates dizia ouvir), era um atentado contra a ordem pública, visto que a religião e o Estado eram unificados. E, por fim, Anito, o político, que acusava Sócrates de Corromper a juventude, um crime contra a tradição da cidade.

Colocando essa análise dentro da “trindade” da antiguidade de que o homem era constituído de corpo, alma e espírito, a primeira acusação seria a mais superficial, um atentado aos costumes. A segunda, de pregar novos deuses, era como se Sócrates atingisse a alma da cidade: a ordem pública. E por fim, a última e mais grave acusação, a corrupção da juventude, seria equivalente à corrupção da alma.


Terceira Etapa: A Análise Dialética & As Contradições Internas das Acusações


Nessa etapa, Sócrates se utiliza da retórica, da ironia, para a primeira parte do processo maiêutico, para demonstrar gerando contradições. Primeiramente, ele demonstra a inconsistência entre a primeira e a segunda acusação. Pois, ou ele não acredita nos deuses ou prega novos deuses. Para demonstrar sua fidelidade para com a tradição religiosa do seu povo, Sócrates chama uma testemunha que conhecia a história de seu amigo, Querofonte, que ao visitar o Oráculo de Delfos, indagou à sacerdotisa: qual o homem mais sábio? E ela teria respondido: Sócrates. Dessa maneira, Sócrates narra sua missão divina de buscar compreender a mensagem oracular, que tinha no seu pórtico: Conhece-te a ti mesmo.

Durante sua busca pelo autoconhecimento, Sócrates se depara com as três classes sociais: os políticos, os poetas e os artesãos. Os primeiros eram os que gozavam de maior reputação, maior poder, porém, eram os maiores ignorantes sobre as coisas. Os poetas possuíam um conhecimento intermediário, não tinham a reputação social de mesmo impacto que os políticos, e possuíam alguns conhecimentos sobre a oralidade. Porém, falavam de muitas coisas das quais não tinham o verdadeiro sentido. Por fim, os artesãos. Sócrates encontrou nesses os que menos gozavam de reputação e influência social, contudo, possuíam um conhecimento técnico verdadeiro sobre algo, e tinham capacidade de produzir objetos reais: o sapateiro produzia sapatos, o tecelão produzia tecido, a costureira produzia roupas. Porém, lhes faltava ainda um conhecimento último que faria deles verdadeiros sábios: o autoconhecimento. Nessa última etapa, Sócrates finaliza seu processo de descoberta de que era o mais sábio, porque era o único que tinha consciência de sua própria ignorância.

Por isso, Sócrates afirma que a acusação de que ele corrompe a juventude é equivocada, pois ele nada sabe e não exige nenhum tributo pelas suas conversas com
qualquer pessoa. Nenhuma das pessoas que tiveram a alma corrompida estava lá para lhe acusar, mas seus amigos que tiveram conversa com elas estavam dispostos a sua defesa.
I - nenhuma pessoa que se sentiu lesada pelas suas conversas o processou. Covardia.
II - existe responsabilidade social para aqueles que se presta a ensinar algo; a maiêutica não ensina nada, apenas ensina o desconhecimento, logo, não possui responsabilidade nenhuma, pois essa seria uma forma mais pura e legítima de o indivíduo tomar conhecimento de si mesmo. "A única corrupção que ele poderia encontrar é a da própria alma”.

Sócrates coloca-se como uma parteira de almas, não é sua responsabilidade qualquer patologia que alguma alma viesse a possuir. Assim como a parteira não tem responsabilidade sobre alguma deformidade que um bebê venha a ter, Sócrates não seria responsável pelas pessoas que lhe rodeavam, e se diziam seguidores de suas ideias e realizavam atitudes injustas. Dessa maneira, Sócrates não teria responsabilidade social sobre infratores que usassem de seu nome para cometer atos vis.


Quarta Etapa: O Sentido Escatológico do Conhecimento


O sentido da Apologia de Sócrates era realizar uma defesa que pudesse salvar sua vida da morte. Porém, por poucos votos, Sócrates quase foi inocentado. Ainda assim, cumpriu-se o sentido espiritual da missão que Sócrates buscava, visto que o daimon, que lhe mandava parar em todas as ações ruins, em momento nenhum se manifestou para fazer Sócrates parar.

Com a penalidade de morte, Sócrates teria duas saídas legais: a multa e o exílio. A multa lhe faria imputar uma pena, que implicitamente seria como se ele reconhecesse a culpa, e teria que parar de exercer o seu método filosófico. Se fosse para o exílio, seria contraditório ao seu método. Sócrates o tempo todo tentou demonstrar a relação de sua forma de pensar como compatível à sua cidade; a valorização implícita à mulher era sua valorização a Atenas, padroeira da cidade à qual ele deu a vida na Guerra do Peloponeso. Portanto, o exílio, inclusive em idade avançada, seria um ultraje contra todo seu método de pensar. Dessa forma, Sócrates sugere ser sustentado pelo Pritaneu, órgão executivo do governo da cidade, que era ocupado por heróis de guerra, representantes das tribos e atletas olímpicos. Sócrates já tinha feito parte do Pritaneu quando lutou contra o julgamento coletivo dos oito generais durante a Guerra do Peloponeso. Sócrates queria retornar agora não mais pelos seus feitos de guerra, mas pelo seu novo feito: o amor pela sabedoria. Dessa forma, Sócrates demonstra que a escatologia da sua busca pelo conhecimento era uma forma de amor cívico e de prestar uma ação social: buscar dar à luz as almas dos cidadãos.


Desfecho: Apenas os Deuses tem poder sobre o destino humano


Dessa maneira, condenado à morte por maioria absoluta, que não entendeu seu pedido, tomando-o como uma ironia insultuosa, Sócrates afirma que o destino da vida não cabe aos homens, pois sua morte lhe livraria do sofrimento das dores da velhice, fazendo-o viver um sono eterno ou encontrar os heróis lendários homéricos. Os homens apenas têm acesso à condenação jurídica formal, mas o destino da vida humana cabe apenas à divindade.

Este é o segundo texto da série de três textos sobre o livro Apologia de Socrates, que está sendo elaborado a cada reunião de atividade do GAM.