O Processo da Maiêutica: As Etapas Causais da Intelectualidade (Parte 2)

Por Douglas Cavalheiro
Revisão por Camilo Soares


Os Últimos serão os Primeiros: O método da maiêutica socrática à luz da temporalidade Histórica



A Apologia compõe a primeira tetralogia de diálogos platônicos, escrita, talvez, no mesmo ano da condenação de Sócrates, ocorrida em 399 a.C. Dentro da obra de Platão existem inúmeros referenciais históricos de acontecimentos, datas e pessoas de existência verídica. Todavia, a forma temporal obedecida pela sua obra é diferente do método histórico que estava se formando na mesma época por Hecateu de Mileto e Heródoto. Ao contrário da historiografia que visa evitar o anacronismo, tomando os acontecimentos num sequenciamento desencadeado a partir de um principio até um fim, de forma linear, o método filosófico segue uma forma circular. Ou seja, como um círculo, é caracterizado por não ter um começo nem um fim, mas sim uma unidade de superfície curva contínua que possui pontos equidistantes de qualquer outro ponto. Em outras palavras, o processo filosófico encontra-se numa atemporalidade, pois o seu percurso de desenvolvimento tem um crescimento contínuo em ciclos ad infinintum

Quando Platão começou a escrever seus primeiros trabalhos, ele tinha por volta de 25 anos. Já Sócrates, com 70 anos, estava no auge da sua maturidade intelectual. À medida que Platão escreve os demais diálogos que sucedem a Apologia, ele remete aos acontecimentos passados da vida de Sócrates, remontando até mesmo à juventude de seu mestre. Portanto, os primeiros trabalhos de Platão demonstram a finalidade como uma forma de projeto intelectual que sua vida tem por seguir, sendo função dos trabalhos subsequentes de prestarem suporte às consequências geradas à luz do projeto socrático, apresentado nos primeiros diálogos da primeira tetralogia de livros. Dessa maneira, todos os últimos trabalhos são apenas uma continuidade do que foi apresentado nos primeiros trabalhos.

Os maiores estudiosos da filosofia antiga atribuem a autoria do método maiêutico a Sócrates, diferentemente dos excertos platônicos das demais obras. A palavra “maiêutica” provém do grego e significa “dar à luz”: Sócrates se põe na posição de um obstetra (do latim: ao lado), como uma parteira que auxilia uma gestante. A associação da atitude intelectual com a polaridade feminina tem um enorme peso quando é colocado um detalhe histórico: todos os seus discípulos e interlocutores eram homens. Sócrates afirma ter tido ensinamentos com Aspásia, sobre retórica, e com uma sacerdotisa chamada Diotima de Mantineia, sobre o amor.

Ao colocar-se como amante da filosofia, Sócrates coloca-se como um ser passivo, um simples meio pelo qual a sabedoria se realiza, tal como ocorre no Oráculo em Delfos, onde a sacerdotisa precisa excluir o ego para ser possessa pelo deus Apolo. Sócrates tinha a finalidade de estimular o comportamento passivo da humildade, que lhe permitiria libertar sua consciência das falsas opiniões, passando a conhecer a si mesmo, gerando o êxtase: o nascimento da alma. Como um parteiro, Sócrates atenta para o comportamento meramente auxiliar de sua atividade de retirar as falsas opiniões, buscando atingir, sobretudo a consciência através do logos.

O logos é uma palavra muito utilizada no mundo antigo, significando ao mesmo tempo “palavra” e “razão”. Esse sentido encontra-se também cifrado no título da obra Apologia, que antecipa a mensagem do diálogo, codificada em apenas um vocábulo. Etimologicamente, Apologeisthai significa apo + logos, ou seja, "para a palavra" "em direção à razão", "em sentido do logos"; “autodiscurso”; ou discurso sobre si. O ponto máximo da filosofia nasce com uma defesa, em outras palavras, um "contra-ataque". É um máximo de elemento de uma reflexão crítica, onde a razão tem que ultrapassar seus limites e criticar-se completamente. Tal como na paixão de Cristo, Sócrates necessita abandonar o máximo de suas falsas opiniões sobre si, sendo movido por sua força de guerreiro na luta pela sobrevivência para evitar a pena de morte. Sócrates vai experimentar a total negação de si para atingir a busca de sua verdadeira forma, atingindo como êxito final o conhecimento de que desconhece. O paradigma que fisicamente é impossível (como o Barão de Münchhausen que busca puxar a si pelos cabelos para sair da areia movediça), na racionalidade encontra sua possibilidade, onde a razão segundo sua própria natureza pode realizar uma autocrítica.

O julgamento de Sócrates representa um verdadeiro convite à filosofia, no momento em que o parteiro de almas tem que realizar o seu maior feito: parir-se a si mesmo. É esse diálogo que contém todas as etapas que Sócrates realizou até definitivamente compreender o verdadeiro sentido da profecia do Oráculo de Delfos de que era “o homem mais sábio”.

Muitos estudiosos têm criado uma imagem maniqueísta de Sócrates, onde haveria uma imagem “socrática” de Sócrates e uma forma de “platônica” de Sócrates. O primeiro Sócrates teria seu método maiêutico característico apenas pela ironia e por levar seus oponentes à contradição lógica, e o “Sócrates platônico” seria o criador da teoria das formas. O uso da ironia é o instrumento retórico de Sócrates, que possui a finalidade de ir retirando as falsas opiniões da pessoa até que ela se conheça. A imagem puramente irônica de Sócrates vai contradizer-se com a sua própria imagem de parteira, pois, para ser como tal é necessário que haja um nascimento no final do processo. Um processo apenas voltado para ironia é totalmente destruído, seria como se houvesse um total sofrimento das dores do parto, mas, no fim, não nascesse ninguém (quase um caso clínico de gravidez psicológica). Dessa forma o método seria incoerente, logo, a maiêutica não pode ser apenas contida na ironia, mas essa é uma das quatro etapas que se seguem no diálogo.



As Etapas Causais da Intelectualidade



Primeira Etapa: O mapeamento histórico e a análise do contexto


O primeiro passo da argumentação de Sócrates é a recapitulação do status quaestionis. Nesse momento, ele realiza uma leitura cronológica sobre os elementos difamatórios que tornaram sua imagem publica uma caricatura, por causa da peça de teatro “As Nuvens”, de Aristófanes. Sócrates atenta para a primeira injustiça do tribunal: a quantidade de tempo de sua difamação não é proporcional à quantidade de tempo que ele possui para sua defesa. Lembrando que Sócrates tinha por volta de 70 anos de idade e a cidade havia passado por muitas guerras, praticamente toda a nova geração da cidade não o conhecia pelos seus feitos pessoais, mas pelas imagens caricaturais das conversas urbanas.


Segunda Etapa: Descrição Formal das Acusações e das relações sociais com os seus Acusadores


Sócrates descreve as três acusações realizadas contra ele correspondentes ao logos, a linguagem: o Sofista, o Poeta e o Político. O sofista possui o dom da retórica, de gerar paixões entre os interlocutores, induzindo ações sociais. O poeta, diferentemente dos atuais, tinha o papel de transmitir a tradição oral da genealogia dos deuses, das histórias homéricas, através da peregrinação. Seria como o papel do missionário atualmente. Caberia a ele a função de organizar a memória do povo através da linguagem, sendo o papel atual da gramática. Ao terceiro, o político, cabe a função de gerenciar e arquitetar as funções da comunidade, sendo dotado de raciocínio lógico.

Cada uma das acusações corresponde aos seus causadores: Licon era um sofista, acusava Sócrates de Não crer nos Deuses da Cidade, um atentado contra os costumes dos cidadãos. Meleto, o poeta, acusava Sócrates de Pregar Novos Deuses (o Daiomon que Sócrates dizia ouvir), era um atentado contra a ordem pública, visto que a religião e o Estado eram unificados. E, por fim, Anito, o político, que acusava Sócrates de Corromper a juventude, um crime contra a tradição da cidade.

Colocando essa análise dentro da “trindade” da antiguidade de que o homem era constituído de corpo, alma e espírito, a primeira acusação seria a mais superficial, um atentado aos costumes. A segunda, de pregar novos deuses, era como se Sócrates atingisse a alma da cidade: a ordem pública. E por fim, a última e mais grave acusação, a corrupção da juventude, seria equivalente à corrupção da alma.


Terceira Etapa: A Análise Dialética & As Contradições Internas das Acusações


Nessa etapa, Sócrates se utiliza da retórica, da ironia, para a primeira parte do processo maiêutico, para demonstrar gerando contradições. Primeiramente, ele demonstra a inconsistência entre a primeira e a segunda acusação. Pois, ou ele não acredita nos deuses ou prega novos deuses. Para demonstrar sua fidelidade para com a tradição religiosa do seu povo, Sócrates chama uma testemunha que conhecia a história de seu amigo, Querofonte, que ao visitar o Oráculo de Delfos, indagou à sacerdotisa: qual o homem mais sábio? E ela teria respondido: Sócrates. Dessa maneira, Sócrates narra sua missão divina de buscar compreender a mensagem oracular, que tinha no seu pórtico: Conhece-te a ti mesmo.

Durante sua busca pelo autoconhecimento, Sócrates se depara com as três classes sociais: os políticos, os poetas e os artesãos. Os primeiros eram os que gozavam de maior reputação, maior poder, porém, eram os maiores ignorantes sobre as coisas. Os poetas possuíam um conhecimento intermediário, não tinham a reputação social de mesmo impacto que os políticos, e possuíam alguns conhecimentos sobre a oralidade. Porém, falavam de muitas coisas das quais não tinham o verdadeiro sentido. Por fim, os artesãos. Sócrates encontrou nesses os que menos gozavam de reputação e influência social, contudo, possuíam um conhecimento técnico verdadeiro sobre algo, e tinham capacidade de produzir objetos reais: o sapateiro produzia sapatos, o tecelão produzia tecido, a costureira produzia roupas. Porém, lhes faltava ainda um conhecimento último que faria deles verdadeiros sábios: o autoconhecimento. Nessa última etapa, Sócrates finaliza seu processo de descoberta de que era o mais sábio, porque era o único que tinha consciência de sua própria ignorância.

Por isso, Sócrates afirma que a acusação de que ele corrompe a juventude é equivocada, pois ele nada sabe e não exige nenhum tributo pelas suas conversas com
qualquer pessoa. Nenhuma das pessoas que tiveram a alma corrompida estava lá para lhe acusar, mas seus amigos que tiveram conversa com elas estavam dispostos a sua defesa.
I - nenhuma pessoa que se sentiu lesada pelas suas conversas o processou. Covardia.
II - existe responsabilidade social para aqueles que se presta a ensinar algo; a maiêutica não ensina nada, apenas ensina o desconhecimento, logo, não possui responsabilidade nenhuma, pois essa seria uma forma mais pura e legítima de o indivíduo tomar conhecimento de si mesmo. "A única corrupção que ele poderia encontrar é a da própria alma”.

Sócrates coloca-se como uma parteira de almas, não é sua responsabilidade qualquer patologia que alguma alma viesse a possuir. Assim como a parteira não tem responsabilidade sobre alguma deformidade que um bebê venha a ter, Sócrates não seria responsável pelas pessoas que lhe rodeavam, e se diziam seguidores de suas ideias e realizavam atitudes injustas. Dessa maneira, Sócrates não teria responsabilidade social sobre infratores que usassem de seu nome para cometer atos vis.


Quarta Etapa: O Sentido Escatológico do Conhecimento


O sentido da Apologia de Sócrates era realizar uma defesa que pudesse salvar sua vida da morte. Porém, por poucos votos, Sócrates quase foi inocentado. Ainda assim, cumpriu-se o sentido espiritual da missão que Sócrates buscava, visto que o daimon, que lhe mandava parar em todas as ações ruins, em momento nenhum se manifestou para fazer Sócrates parar.

Com a penalidade de morte, Sócrates teria duas saídas legais: a multa e o exílio. A multa lhe faria imputar uma pena, que implicitamente seria como se ele reconhecesse a culpa, e teria que parar de exercer o seu método filosófico. Se fosse para o exílio, seria contraditório ao seu método. Sócrates o tempo todo tentou demonstrar a relação de sua forma de pensar como compatível à sua cidade; a valorização implícita à mulher era sua valorização a Atenas, padroeira da cidade à qual ele deu a vida na Guerra do Peloponeso. Portanto, o exílio, inclusive em idade avançada, seria um ultraje contra todo seu método de pensar. Dessa forma, Sócrates sugere ser sustentado pelo Pritaneu, órgão executivo do governo da cidade, que era ocupado por heróis de guerra, representantes das tribos e atletas olímpicos. Sócrates já tinha feito parte do Pritaneu quando lutou contra o julgamento coletivo dos oito generais durante a Guerra do Peloponeso. Sócrates queria retornar agora não mais pelos seus feitos de guerra, mas pelo seu novo feito: o amor pela sabedoria. Dessa forma, Sócrates demonstra que a escatologia da sua busca pelo conhecimento era uma forma de amor cívico e de prestar uma ação social: buscar dar à luz as almas dos cidadãos.


Desfecho: Apenas os Deuses tem poder sobre o destino humano


Dessa maneira, condenado à morte por maioria absoluta, que não entendeu seu pedido, tomando-o como uma ironia insultuosa, Sócrates afirma que o destino da vida não cabe aos homens, pois sua morte lhe livraria do sofrimento das dores da velhice, fazendo-o viver um sono eterno ou encontrar os heróis lendários homéricos. Os homens apenas têm acesso à condenação jurídica formal, mas o destino da vida humana cabe apenas à divindade.

Este é o segundo texto da série de três textos sobre o livro Apologia de Socrates, que está sendo elaborado a cada reunião de atividade do GAM.
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