O Problema Socrático: Os elementos entre o mítico e o histórico (Parte 1)

Por Douglas Cavalheiro 
Revisão de Camilo Soares



O desafio de compreender o Sócrates histórico foi lançado por estudiosos contemporâneos com a finalidade de distinguir a figura socrática da filosofia de Platão, sendo Soren Kierkegaard um dos precursores dessa problemática no século XIX. Influenciado pela filosofia de Immanuel Kant e pela teologia liberal de Friedrich Schleiermacher, Kierkegaard procurou realizar uma distinção, através do conceito da ironia socrática, da matemática especulativa característica do pensamento platônico. Simultaneamente, na teologia, muitos pensadores buscavam realizar a construção de um "Jesus Cristo histórico", distinguindo os ensinamentos morais dos acontecimentos miraculosos. Essa desunião da natureza humana e divina do Cristo é uma heresia conhecida como nestorianismo. Todavia, como Sócrates foi um ser humano e não Deus, como no caso do Cristo, é importante encontrar a verdadeira face socrática. Sendo esse o principal objetivo do presente estudo, para isso serão tomados como referencial a peça de Aristófanes As Nuvens, de 423 a.C., a Memorabilia de Xenofonte e A Apologia de Sócrates de Platão, de 398 a.C. Também serão utilizados de suporte alguns comentadores, como Diórgenes Laercios de Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres, e historiadores como Tucídides d’a História da Guerra do Peloponeso.

Sócrates nasceu em 469 a.C. em Atenas, filho do escultor Sofrónisco e da parteira Fenarete. Atenas encontrava-se então no auge do seu poder com a Liga de Delos. Estabeleceu a obrigatoriedade de todas as cidades que faziam parte da federação de cidades-estados a pagar tributos para suas reformas, devido às destruições realizadas durante as guerras contra os persas. Essa época foi conhecida como a Era de Ouro de Atenas, quando a cidade foi governada pelo general Péricles por quinze anos. O pai de Sócrates provavelmente trabalhou nas inúmeras reformas arquitetônicas da Acrópole, como o Partenon dedicado a deusa Atena, empreendida pela liderança do arquiteto Fídias.

Provavelmente, Sócrates teve seus primeiros ensinamentos inspirados no ofício do seu pai. A técnica de esculpir trouxe para ele conhecimentos matemáticos necessários para o exercício da função, como os teoremas atualmente conhecidos como "teorema de Tales" e "teorema de Pitágoras". Possivelmente desse grupo Sócrates obteve aprendizado de conhecimentos matemáticos provenientes do Egito para construções dos templos. Porém, não se tem conhecimento de obras com a autoria de Sócrates. Haja vista que muitos trabalhadores braçais que faziam parte de grupos de artesãos não tinham costume de assinar suas obras, ficando isto a cargo do artesão-mestre, acredita-se que Sócrates não tenha se destacado muito na função de construtor.

Nessa época, Atenas começou a se caracterizar como uma cidade cosmopolita, sendo frequentada por muitos comerciantes estrangeiros e intelectuais, o primeiro deles sendo Anaxágoras. Com sua amizade próxima a Péricles, ele estabeleceu seus primeiros discípulos, entre os quais o principal era Arquelau. Anaxágoras começou a se tornar como que um mentor intelectual e ideológico do novo regime que se formava. Será através do guru de Arquelau que Sócrates passará a ter conhecimento das novas especulações físicas, e consequentemente das novas perspectivas cosmológicas, sobre a origem da vida terrestre. Uma das grandes marcas inovadoras dos pensamentos desses primeiros filósofos é a da possível esfericidade do planeta Terra.

Todavia, a visita que mais marcou a orientação filosófica de Sócrates foi a de Parmênides, que visitou Atenas em 450 a.C. No mesmo ano, sendo já alvo de perseguições políticas, Anaxágoras é condenado por ateísmo pelos inimigos políticos de Péricles e tem que fugir, assim como o sofista Protágoras, que teve sua obra queimada em praça pública.
Em 427 a.C. os sofistas começam a entrar em Atenas, com a visita de Górgias, embaixador de sua cidade, que marca profundas influências na formação da retórica e das técnicas do discurso de Sócrates. Porém, a diplomacia sofista não foi suficiente e a Guerra do Peloponeso eclode em 431 a.C. tendo uma duração de 27 anos, encerrando a hegemonia pacífica do império ateniense.

Atenas inicia suas vitórias na Batalha da Potídeia em 431 a.C., da qual Sócrates, já perto dos 40 anos, participa como hoplita, salvando seu general, Alcebíades. Esse evento marca profundamente a vida de Sócrates, que deixa de ser um esquecido funcionário pobre, torna-se herói de guerra, sobe de patente militar, é convidado para cortejos na alta sociedade (como é narrado no Banquete), conhece pessoas importantes como Aspásia (mulher de Péricles), e se casa com Xantipa, uma jovem da alta sociedade, com quem tem três filhos. Porém, a cidade passa por uma peste terrível que mata seu maior líder, Péricles. As derrotas começam a se acumular após nove anos de conflito redundando em fracassos. Sócrates, junto com o general filho de Péricles, tentam organizar uma conquista da Beócia, que acaba em fracasso, com a Batalha de Delion em 426 a.C. Diante dessas novas circunstâncias, Sócrates passa de herói a bode expiatório de Aristófanes, na sua peça de teatro As Nuvens, escrita em 423 a.C.

Aristófanes foi um grande adversário das lideranças do conflito, sendo um rival dos políticos democráticos que estavam engajados na luta contra Esparta. O dramaturgo identifica no sistema democrático a origem da crise da sociedade ateniense, sendo os responsáveis por esse novo sistema político os intelectuais que pregavam novas ideias, que teriam distanciado os homens dos deuses tradicionais e do cultivo agrícola da terra. Todas as desgraças da guerra e da peste seriam culpa desses novos intelectuais. Aristófanes enxerga na figura dos sofistas os frutos do regime democrático de Péricles, que destruíram a cultura e a tradição grega e trouxeram a guerra e a peste como castigos divinos. Como Sócrates era na ocasião o de maior evidência, Aristófanes o coloca, junto com seu amigo democrata Querofonte, como um dos antagonistas da peça As Nuvens. No ano seguinte, em 422 a.C., na batalha de Amfipolis, em que Sócrates e Tucídides lutaram, Atenas sofreu outra grave derrota contra as tropas terrestres de Esparta.

No período mais crítico da guerra, em 414 a.C., o general Alcebíades trai Atenas, por ter profanado as estátuas de Hermes, indo se refugiar e lutar ao lado de Esparta. Porém, agindo com duplicidade, gozando de sua posição entre os espartanos, toma à força as conquistas para Atenas e retorna ao exército ateniense, que o absolveu de seus crimes contra a religião.

Em 407 a.C. Alcebíades retorna para Atenas, sendo também recebido por Sócrates. Ambos passam a ir contra a nova campanha naval que os políticos estavam tentando realizar. Sócrates, ainda tendo sua influência, entrou em conflito com os políticos democráticos. Em 406 a.C., após a vitoriosa batalha da Arginusa, os generais deixaram os corpos dos soldados no mar, sem trazê-los para um sepultamento tradicional. Os líderes democráticos tentaram condenar por crime de guerra oito generais que negaram assistência aos náufragos. Sócrates disse que o julgamento em conjunto era contra as leis, sendo o único a votar contra o julgamento em conjunto dos generais, que terminou com a morte de todos. Finalmente, Esparta acaba prevalecendo na batalha de Aegospotami, e Alcebíades se exila na Pérsia fugindo dos espartanos, que conseguem assassiná-lo.

Em 404 a.C., com a derrota total de Atenas, foi instaurada uma tirania de 30 aristocratas, entre eles Crítias e Carmines, que tinham sido amigos próximos de Sócrates e lhe cobraram fidelidade ao regime, exigindo-o que matasse Leon de Salamina. Sócrates não obedece, não sendo penalizado porque o regime cai com o retorno da democracia. Querofonte, amigo democrata de Sócrates, retorna para Atenas, falando, em sua visita a Delfos, que Sócrates era o homem mais sábio de Atenas.

A partir desse momento Sócrates passa a conviver na praça, indagando a todos sobre as questões fundamentais para a formação de seu método filosófico. Nessa última fase de sua vida ele conhece Platão, que passa a acompanhar seus ensinamentos. Esses últimos três anos Sócrates passou investigando seus cidadãos, até ser chamado para julgamento em 399 a.C., por "não acreditar nos costumes e nos deuses da cidade" "pregar novos deuses", e "corromper a juventude".

Segundo Plutarco, Alcebíades tinha uma paixão por Sócrates desde que ele o tinha salvo. Porém, esse amor nunca correspondido deixou Alcebíades sem mais observar os outros interessados nele, entre eles Ânito, um dos acusadores de Sócrates. Muitos colocam que Ânito estava movido pelo ciúme a Alcebíades. Ânito foi também um general na Guerra do Peloponeso. Entusiasta do regime democrático, luta contra o regime dos trinta tiranos, passando a ser um dos maiores líderes da nova democracia. Ânito e Sócrates se encontram num relato do dialogo Menon, onde é discutida a melhor forma de educar a juventude. Ânito alerta Sócrates de que suas ideias muito revolucionárias contra o regime poderiam arriscar a integridade da juventude. Sócrates ensina um filho de Ânito que o regime democrático não é virtuoso, desencorajando-o para a carreira política que o pai queria que ele tomasse. Isso desperta a cólera de Ânito, que move um processo contra Sócrates.

Durante essa época, Sócrates já está com 70 anos de idade, toda sua geração tinha morrido, ou nos combates das guerras, ou pela peste. Numa época onde a idade máxima em geral era até os 40 anos, poder-se-ia dizer que Sócrates era um dos mais velhos de sua cidade. Toda a população que pertencia a uma nova geração durante o novo regime democrático conhecia Sócrates apenas pelas formas hiperbólicas das caricaturas realizadas por Aristófanes. Sócrates, que antes era visto como uma degeneração para os valores gregos tradicionais e fruto do regime democrático, passou a ser visto como uma ameaça ao regime democrático em virtude de suas constantes críticas, principalmente aos cargos que eram eleitos através do sorteio, e na questão do julgamento dos generais. Sócrates é condenado à morte, mas é eternizado pela obra de seu maio discípulo, Platão. Os filhos de Sócrates, Menexeus, Lamprocles e Sofrónisco, tornaram se apenas jovens "bobos e sem graças", segundo Aristóteles.


Este é o primeiro texto da série de três textos sobre o livro Apologia de Socrates, que está sendo elaborado a cada reunião de atividade do GAM.
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