Por Arthur Dutra (*)
“Disse e continuo acreditando, cada dia com mais convicção, que a sociedade humana é sempre aristocrática, queira ou não, por sua própria essência, a ponto de ser sociedade na medida em que é aristocrática, e deixa de sê-lo na medida em que se desaristocratiza”.
Este é o
pensamento do grande historiador espanhol Jose Ortega y Gasset, transcrito do
magnífico livro “A rebelião das massas”,
leitura obrigatória nesses dias. Ao longo da obra, um conjunto de ensaios escritos na década de 1920, Ortega y Gasset explicita o que
está por trás do referido enunciado, para ao final concluir que algo na
sociedade contemporânea não vai nada bem.
É neste livro
que ele desenvolve o conceito de homem-massa.
Em síntese, o homem-massa seria aquele cidadão vulgar que, nascido na contemporaneidade,
ignora completamente todos os esforços empreendidos pelos grandes homens do
passado para construir toda uma civilização que ele tem como natural, tão
somente pelo fato de não ter presenciado sua construção. Ou seja, para o homem-massa tudo
aquilo que ele conhece sempre existiu, independente dos imensos esforços passados. Vulgar e descrente
de qualquer culto ao conhecimento profundo e universal, este homem considera-se
auto-suficiente e capaz de julgar as coisas baseado tão somente no conhecimento
altamente especializado que detém sobre uma pequena parcela do saber humano –
são os especialistas, na acepção pobre da palavra. Ortega compara sua
constituição moral à de uma criança mimada que não empreendeu qualquer esforço
para construir a fortuna de seus antepassados e, por isso, se acomoda dos altos
deveres de mantê-la incólume e até de aumentá-la.
Olhando do
ponto de vista histórico, parece claro que esse tipo de homem sempre existiu,
como bem noticia Platão em “A República”. Mas o que Ortega coloca com maestria
é a gênese por qual passou o cidadão medieval até atingir a atual conformação
de seu ser e, mais ainda, a proeminência que tais cidadãos assumiram na
atualidade, agindo no sentido de destruir todo o legado civilizacional
construído ao longo de séculos e séculos.
Para isso,
segundo Ortega y Gasset, contribuíram os seguintes fatores: a) elevação do
nível histórico: as massas passaram a ter um grau de aspirações semelhantes aos
das elites de outrora; b) dois séculos de educação liberal que inculcaram na
mente das massas os postulados da democracia, dos direitos civis etc.; c)
enriquecimento econômico da sociedade; d) aumento das possibilidades vitais do
homem médio, ou seja, o espaço terrestre passou a ser mais acessível na medida
em que novas tecnologias permitem um maior aproveitamento do tempo e espaço; e)
aumento da potencialidade de realizar as possibilidades que a vida apresenta ao
homem médio.
Além disso,
deve-se considerar o aumento vertiginoso da população européia no século XIX,
sem que, com isso, fosse possível oferecer uma educação adequada àquela
quantidade de novas pessoas, sendo possível oferecer apenas “técnicas”, tais
como a medicina, a engenharia, o direito etc. Ciente do que notou Ortega y
Gasset, transcrevo um trecho do ensaio “A idéia de Universidade e as idéias das classes médias”, de Otto Maria Carpeaux, que complementa o dito orteguiano:
“É preciso que se digam, aqui, algumas verdades muito impopulares e muito desagradáveis. Existe Inteligência e existe ‘intelectuais’. Intelectuais são os médicos, os advogados, os funcionários superiores de toda espécie, os especialistas científicos de toda sorte. Mas deve-se dizer que somente uma parte desses ‘intelectuais’ pertence à Inteligência, que é, por seu lado, o resto dos ‘clercs’, da elite de outrora. Sejamos sinceros: podemos ser bom médico, bom advogado, bom professor, e ter o espírito preso aos limites da profissão; e sabemos que o grau acadêmico nem sequer é sempre a garantia de boas qualidades profissionais. Mas ele confere sempre uma autoridade social”.
Mais adiante Carpeaux arremata dizendo que:
“A violência anti-intelectualista das novas classes médias é, afinal, uma falta de educação, ou, antes, o fruto de uma falsa educação. Fruto da falsa idéia que as classes médias formavam da Universidade: da nova Universidade, que fornece exércitos de médicos, advogados e técnicos, em vez de ‘clercs’, de uma elite”.
Hoje o que mais
nos agastamos de ver no cenário midiático são profissionais que se dizem
“especialistas” em uma determinada área, opinando com autoridade suprema sobre
outros assuntos que, em verdade, estão fora da sua alçada de compreensão,
justamente porque receberam uma educação que não lhes permite conhecer aqueles
altos desígnios, alcançáveis apenas pelas grandes mentes. São exatamente esses
que hoje comandam os destinos da civilização ocidental, ignorando e
contribuindo para destruir toda uma cultura milenar que permitiu que eles mesmos
melhorassem de vida, sem que, com isso, tenham nada de melhor a oferecer.
Com isso Ortega
não está a dizer que a popularização da educação técnica seja um mal. Ao
contrário. O que ele deixa claro é que esse tipo de educação oferecida não
habilita os seus receptores a tomar as rédeas da humanidade. A diferença,
portanto, entre o homem-massa atual e os antigos cidadãos médios da antiguidade
é que estes não tinham qualquer pretensão em dirigir os destinos de seu país,
cidade ou vila, enquanto que hoje os homens-massa estão cada vez mais ciosos de
que têm condições de fazê-lo, e ainda arrogam para si o direito de exigir o
cumprimento de tal tarefa.
É nesse sentido
que Ortega y Gasset entende que a sociedade é aristocrática por essência: o
comando dos destinos de um povo deve ficar a cargo daqueles realmente mais
aptos, especialmente preparados para o encargo, cujos olhos estejam fitos no
futuro, mas que também sejam conscientes do passado de grandes batalhas
travadas para a construção da modernidade, e não nas querelas e miuçalhas burocráticas
de que se ocupam o cidadão comum, ou, como conceituou Ortega, o homem-massa.
Quando a sociedade não está nas mãos desta elite ela desmorona, entrega-se à violência das massas ignaras, arrogantes e incultas e, assim, deixa
de ser sociedade para se tornar apenas uma bagunça, como parece estar bem claro
para os seres realmente pensantes – os poucos que restam – deste país.
(*) Publicado originalmente na 7ª edição da revista O Coyote.