Por Arthur Dutra
Um romance-panfleto
que impressiona por sua profundidade. Em “Os demônios”, Dostoiévski alia toda
sua categoria de ficcionista ao ímpeto panfletário de quem busca denunciar
algo. O ponto central é a descrição da atuação de uma sociedade secreta de
caráter niilista com fins revolucionários que age na Rússia, capitaneada por um
certo Piotr Stiepanocitch Vierkhoviénski, inspirada na existente em meados de
1860 denominada “Justiça Sumária do Povo”. A estória é, portanto, baseada em
fatos reais que na época chocaram a sociedade russa. Trata-se do assassinato do
estudante I. I. Ivanov pelos próprios companheiros revolucionários, motivado pela
suspeita de que este fosse delatar as ações criminosas do grupo.
Até o romance engrenar
lá se vão mais de 200 páginas, momento em que pela primeira vez aparece alguma
menção aos “demônios” que intitulam o livro, que é a denominação que dá o
personagem do Capitão Lebiádkin à sociedade secreta. A ação do grupo
revolucionário é engendrada pelas figuras de Piotr Stiepanovitch Vierkhoviénski
e Nicolai Vsievolodovitch Stravóguin. Um, o líder operacional da fraternidade;
o outro, um símbolo de inspiração para o chefe, e um dos mais complexos
personagens criados por Dostoiévski.
Pois bem. Dentre
muitas questões que merecem a análise romanceada de Dostoiévski, uma delas é o
embate entre os conservadores e os revolucionários. A representação romanesca
deste antagonismo fica evidente na estranha relação entre o governador da
província, Von Lembke, e Piotr Stiepanovitch. Lembke fala: “Apenas seguramos o que os senhores abalam e
aquilo que sem nós se desfaria em muitos pedaços”. Do mesmo modo que a
mulher do governador, Yúlia Mikhailovna, acontece dos conservadores
subestimarem os planos e ideias dos revolucionários, e, assim, abrirem caminho seu
para agirem livremente. Isso fica mais claro ainda quando o próprio Piotr
Stiepanovitch assinala que “O senhor é
quem sabe, mesmo assim o senhor abre o caminho para nós e prepara nosso
sucesso” (página 311)
Ou seja, o
próprio revolucionário enxerga as fraquezas do regime instituído e vê neles o
caminho por onde faz entrar seus propósitos, porém, não de forma honesta e
aberta, e sim camuflada, sorrateira, enganando os que os tratam de boa-fé e transformando-os
em verdadeiros idiotas úteis. Para tanto, valem-se da guerra no campo cultural,
tática que Dostoiévski já houvera detectado antes mesmo de Antonio Gramsci a
sistematizar com seu conceito de “Revolução Cultural”, que é a destruição
completa dos cânones da cultura ocidental-burguesa-cristã a fim de implantar o
regime socialista, o que de fato terminou por acontecer em sua modalidade
insurrecional na Rússia por obra da Revolução de 1917, cujo terreno já vinha
sendo preparado desde antes. Para tanto, urgia trazer a inquietação e a
desordem à sociedade e, para isso, qualquer tipo de gente serviria, notadamente
os criminosos de todo gênero, “Aí
qualquer grupo sarnento será útil”, página 410¸assim como outros cidadãos
que, sem saber, professam os ideais revolucionários, conforme assinala Piotr
Stiepanovitch:
“Os nossos não são apenas aqueles que degolam e ateiam fogo, e ainda fazem disparos clássicos ou mordem. Gente assim só atrapalha. Não concebo nada sem disciplina. Ora, sou um vigarista e não um socialista, eh, eh! Ouça, tenho uma relação de todos eles: o professor de colégio que ri com as crianças do Deus delas e do berço delas, já é dos nossos. O advogado que defende o assassino culto que por essa condição já é mais evoluído do que suas vítimas e que, para conseguir dinheiro não pode deixar de matar, já é dos nossos. Os colegiais que matam um mujique para experimentar a sensação, são dos nossos. Os jurados que absolvem criminosos a torto a direito são dos nossos. O promotor que treme no tribunal por não ser suficientemente liberal é dos nossos. Os administradores, os escritores, oh, os nossos são muitos, um horror, e eles mesmos não sabem disso!”. (página 409)
Por
subterrâneos, esses movimentos tornam-se invisíveis aos olhos comuns, de modo
que seus resultados sequer são ligados às causas remotas. Isso foi detectado
pelo pensador Olavo de Carvalho:
"Os homens que se gabam de ser práticos -- empresários, políticos, comandantes militares -- são os mais lentos em perceber o sentido prático de certas modas culturais sem teor político demasiado aparente, nas quais não enxergam senão curiosidades acadêmicas ou até exigências morais legítimas, mas cujo efeito, temporariamente obscurecido pela variedade e confusão das palavras que as veiculam, mais cedo ou mais tarde acaba por se manifestar da maneira mais brutal. Invariavelmente, esse efeito é um só: o assassinato político em massa, o genocídio."
Este é um
fenômeno que atinge a modernidade com a já citada Revolução Cultural,
idealizada por Antonio Gramsci e outros pensadores marxistas, com o fito de
abrir caminho pela trincheira cultural a fim de criar as bases para o regime
socialista almejado, vez que a tática insurrecional clássica – a revolução
comunista - falhou por completo, ao custo de milhões de vidas humanas.
O grupo
revolucionário leva a efeito esses ideais e funciona com uma hierarquia rígida
que vem a se consolidar com laços de sangue derramado pelo assassinato do
dissidente Chatóv, ao argumento de que este terminaria por denunciar a
sociedade em sua atuação no incêndio criminoso ateado em um vilarejo de
arrabalde. O pacto de sangue fortaleceria a irmandade de modo a criar uma
cumplicidade de tal envergadura que jamais um delataria o outro. Essa era a
tática usada por outro revolucionário célebre por sua crueldade: Ernesto “Che”
Guevara.
Em um pelotão
de fuzilamento militar a praxe é que apenas uma das armas dos atiradores esteja
municiada, ficando as demais com balas de festim, a fim de que não se saiba de
onde partiu o projétil que atingiu o condenado à morte. Guevara aboliu essa
regra municiando todas as armas e fazendo com que os artilheiros soubessem de
tal fato para criar a cumplicidade dos soldados à sua causa revolucionária e
não a traísse sob qualquer hipótese, sob pena de também serem responsabilizados
moralmente pelos crimes. Não por acaso Guevara adotava essa prática. É que
Piotr Stiepanovitch é a versão romanceada do revolucionário Sergei Netchaiev,
co-autor do Catecismo do Revolucionário,
obra que serviu de inspiração ao próprio Guevara durante a Revolução Cubana, e
que continha o manual de conduta de todo revolucionário.
O cerne e a
consequência da mentalidade revolucionária que domina os integrantes da
sociedade secreta são metaforizadas na passagem bíblica da “Expulsão dos
demônios de Gesara” no livro de Lucas, epigrafada no início da obra, cujo
conteúdo é contextualizado aos fatos do romance por Stiepán Trofimovitch em seu
leito de morte, na magistral passagem:
“Esses demônios, que saem de um doente e entram nos porcos, são todas as chagas, todos os miasmas, toda a imundice, todos os demônios e demoniozinhos que se acumularam na nossa Rússia grande, doente e querida para todo o sempre, todo o sempre! Sim, a Rússia que eu sempre amei. Mas a grande idéia e a grande vontade descerão do alto como desceram sobre aquele louco endemoniado e sairão todos esses demônios, toda a imundice, toda a nojeira que apodreceu na superfície... e eles mesmos hão de pedir para entrar nos porcos. Aliás, até já entraram, é possível! Somos nós, nós e aqueles, e também Pietrucha... e outros com ele, e é possível que eu seja o primeiro, que esteja à frente, e nós lançaremos, loucos e endemoniados, de um rochedo no ar e todos nos afogaremos, pois para lá é que segue o nosso caminho, porque é só para isso que servimos. Mas o doente haverá de curar-se e ‘se assentará aos pés de Jesus’...”.
Como se vê, ele
conclama os corpos dominados pelo espírito revolucionário a uma volta à
espiritualidade e àquilo que é realmente grandioso e essencial: Deus. Sem isso,
o homem se deixa dominar por qualquer idéia que o leva a agir de forma
contrária a sua própria natureza, causando tão somente a derrocada e o
desespero – a queda dos porcos no abismo profundo. Mas há esperança, “o doente haverá de curar-se”; a Rússia,
e nela projetada a humanidade, há de voltar seu espírito para o Altíssimo,
como, por fim, num último suspiro, vaticina:
“Para o homem, muito mais necessário que a própria felicidade é saber e, a cada instante, crer que em algum lugar existe uma felicidade absoluta e serena, para todos e para tudo... Toda a lei da existência humana consiste apenas em que o homem sempre pôde inclinar-se diante do infinitamente grande. Se os homens forem privados do infinitamente grande, não continuarão a viver e morrerão no desespero. O desmedido e o infinito são tão necessários ao homem como o pequeno planeta que ele habita... Meus amigos, todos, todos: viva a Grande Idéia! A eterna, a desmedida Idéia! Todo homem, quem quer que ele seja, precisa inclinar-se diante daquilo que é a Grande Idéia. Até o homem mais tolo tem ao menos a necessidade de algo grande.”
Portanto, mais
do que um romance, a obra traz uma mensagem elevada, instando os seus leitores
a não se deixarem dominar por idéias sedutoras, promessas de poder e um paraíso
terrestre pela ação revolucionária, pois em todas as vezes que alguém se propôs
a isso engendrou somente misérias e desgraças, e jamais conseguiu atingir seus
objetivos utópicos, como ocorreu com a sociedade secreta comandada pelo
revolucionário cruel Piotr Stiepanovitch.
(*) Texto publicado na 5ª edição de O Coyote.