A Historiografia Socrática: As Diversas Imagens de Sócrates à Luz da Temporalidade (Parte 3)

Por Douglas Cavalheiro
Revisado por Camilo Soares




Após a morte de Sócrates, os seus discípulos, liderados por Antístenes, moveram uma ação contra Meleto. Segundo Diógenes Laécio Meleto foi exilado ou foi condenado ao apedrejamento; há ainda autores que especulam que Anito se arrependeu da ação judicial que moveu contra Sócrates.

A principal questão que perpassou os discípulos de Sócrates é conhecida como a teodicéia: “se Deus é bom, por que os justos sofrem?”, ou “é prazeroso ter uma vida justa?”. Se um mestre virtuoso como Sócrates teve um fim trágico e injusto, é prazeroso ser justo, visto que todos os que são corruptos parecem gozar de uma vida melhor do que as pessoas virtuosas? 

Vista a última questão abordada na Apologia, cabem apenas à Divindade os rumos dos destinos humanos, porque então o destino humano é deixado à deriva. Diante dessas questões, surgiram quatro escolas que lhes irão propor respostas.

As Escolas Socráticas: Os Cínicos, os Cirenáicos, os Megáricos e os Acadêmicos.

Os Cínicos – Fundada por Antístenes, essa escola focaliza o ensinamento prático da vida humilde e simples. Antístenes era filho de um ateniense com uma escrava, não tinha título de cidadão. Ele será o primeiro precursor da filosofia Cínica. Advogava a vida ascética e eremita, negando todos os prazeres, que levariam a razão à ilusão e ao engano. Usando da ironia para realizar um choque nos interlocutores, visava levar uma vida pobre e desacreditava das autoridades sociais. Na física de Antístenes, a divindade era transcendente e incapaz de refletir suas ações na realidade. O filósofo desacreditava das riquezas materiais e era casto sexualmente. Assim como Sócrates, não escreveu seus ensinamentos, deixando apenas seu exemplo prático de vida. Seu maior discípulo será Diógenes, o Cão, que vai radicalizar os ensinamentos de seu mestre e viver num barril.

Os Cirenáicos – Arístipo foi o precursor dessa escola de filosofia antagônica aos Cínicos. Tomando a ética como central, o prazer é visto como uma consequência boa das atitudes virtuosas, adaptando as circunstâncias para si e obtendo o controle adequado sobre a adversidade e a prosperidade. Recebia pagamentos pelos seus ensinamentos e possuía uma vida sexual ativa, cultivando amantes de ambos os sexos. Segundo Arístipo, para evitar torna-se escravo dos sentidos é necessário deixar de ser escravo das circunstâncias e passar a dominá-las. Assim como Antístenes, Arístipo tinha a concepção de que Deus não interferia na ordem do cosmo. Essa escola vai inspirar os princípios da Escola Hedonista de Epicuro.

Os Megáricos – Escola fundada por Euclides de Mégara, concentrava-se no ceticismo, afirmando que Deus não interferiria na realidade humana. Concentra-se em avaliar o paradoxo “só sei que nada sei” e formula uma série de paradoxos lógicos que possuíam a finalidade retórica de demonstrar a inviabilidade do conhecimento absoluto. O principal deles será conhecido como Paradoxo de Sorites. Será sob essa inspiração que irão surgir os Estóicos e os Céticos.

A Academia – Escola fundada por Platão, enxerga os frutos das demais escolas como exageros gerados pela angústia diante da morte de Sócrates, fazendo deste uma caricatura para justificar seus pensamentos. Segundo Platão, o prazer da vida virtuosa encontra-se na razão, por isso ele vai tomando como inspiração os princípios matemáticos dos pitagóricos, reformulando a cosmologia grega, visando assim evitar a relativização que acontecia ao seu redor. Sendo esses valores numéricos, as formas abstratas representam toda a realidade e a essência humana diante de suas formas de potências passadas. Porém, após a morte de Platão, seu sobrinho Speusipo passa à liderança da Academia, causando a saída de Aristóteles. Após oitenta anos, a Academia torna-se um centro do ceticismo absoluto, negando qualquer forma de conhecimento verdadeiro.

Idade Média

Sócrates: o Santo e o Mártir

Os primeiros padres da Igreja condenavam as culturas pagãs como elementos contrários à doutrina espiritual do Cristianismo. Todavia, muitos importantes apologistas demonstravam a intensa relação da cultura grega com a mensagem cristã. Essa ação será realizada por São Justino, o Mártir, que uniu Cristandade e Helenismo, evitando uma condenação generalizada de toda a cultura grega, como se esta fosse apenas uma forma de gnosticismo e fetichismo pagãos.

É possível apontar diversas semelhanças entre Jesus Cristo e Sócrates. Primeiramente, ambos tiveram o auge da sua filosofia nos últimos quatro anos da vida. Ambos tiveram um julgamento injusto, tiveram formação técnica (o pai de um era carpinteiro; o do outro, escultor) e profundo amor para com sua mãe. A formação intelectual remontava a uma influência longínqua do Egito. Ambos foram acusados de impiedade aos deuses e à tradição da sociedade, tinham uma vida material humilde e possuíam uma missão divina, sendo um como o homem mais sábio e o outro como o Messias. Ambos eram dotados de ensinamentos semelhantes que se completam por duas formas distintas, e se comunicavam por parábolas que realizavam analogias com a realidade.

Os ensinamentos de Jesus resumidos nas máximas “Amar a Deus acima de tudo” e “Amar ao próximo assim como a si mesmo” são uma maneira positiva de relatar os ensinamentos socráticos “Conhece-te a ti mesmo” e “Só sei que nada sei”, enunciados de uma maneira negativa. Nota-se uma complementaridade de sentido, pois o homem atinge o autoconhecimento, nega seu orgulho e reconhece a sua ignorância e impotência diante do destino, afirmando a autoridade da Divindade acima de todas as coisas. Dessa maneira, o ensinamento socrático, ao afirmar o saber que não se sabe, passa a afirmar a opinião alheia como uma possibilidade de estar correta, e a sua, falha. Logo, ambos os ensinamentos são complementares, apesar de Jesus apresentar, de forma positiva, o que se deve fazer, e Sócrates coloca pelo viés negativo, pelo que não se deve fazer (tal como o daimon lhe aconselhava).

Contudo, existem algumas diferenças importantes entre ambos. Primeiro, Sócrates, que foi um mortal, casou, teve filhos, foi herói de guerra e frequentou a alta sociedade e a política, enquanto que Jesus Cristo era Deus, ressuscitou, não casou nem muito menos teve filhos, não pertenceu à alta sociedade nem teve atuação dentro da política de seu tempo. Mas a maior distinção entre ambos é a necessidade de Sócrates em vincular o método maiêutico ao Estado, simbolizado como uma mulher, sexualidade da patrona de Atenas. Sócrates tinha como finalidade não apenas demonstrar um novo método autocrítico para os seus compatriotas, como pretendia estar dentro do Estado para transformá-lo através desse feito, inspirando o modelo de “rei-filósofo” descrito por Platão. Já Jesus Cristo separou seus ensinamentos do Estado, ficou sempre fora da política e seu maior ensinamento voltado para vida política e social é “dar a César o que é de César e dar a Deus o que é de Deus”.

As Duas faces de Sócrates na Modernidade

O Humanismo e Iluminismo: Sócrates como o Rebelde Líder Democrático

O início da modernidade foi marcado por conflitos religiosos gerados pela reforma protestante e pelo renascimento dos estudos herméticos. Sócrates tornou-se para essa época uma vítima da intolerância religiosa. Os ceticismos de muitos pensadores na modernidade afirmavam remontar aos aspectos da ironia socrática. Dessa forma se iniciou a interpretação de Sócrates como líder tolerante, com O Elogio da Loucura, de Erasmo de Roterdã, escrito em 1509, que coloca Sócrates como uma espécie de santo dos tempos modernos. Nos Ensaios, de Michel de Montaigne, o ceticismo é radicalizado, substituindo o “Só sei que nada sei” por uma indagação “Que sais-je?” (o que eu sei?).

Já no iluminismo, Voltaire vai escrever uma peça teatral chamada Sócrates, em 1778, onde narra a perseguição dele por um complô de fundamentalistas religiosos contra as aspirações racionais. Por fim, Kant, no seu livro O que é o Iluminismo, em1784, muda a máxima “Conhece-te a ti mesmo” para o imperativo de Horácio, Sapere Aude, (Ouse saber). Retirando o autoconhecimento do sentido teleológico da vida intelectual, colocando numa maneira de um novo imperativo para o conhecimento coadunado com a ousadia.

Durante esse primeiro período da Modernidade, a figura histórica de Sócrates é montada como uma luta constante contra a intolerância religiosa, inspirada no ceticismo como sendo a única fonte de sua filosofia. Antagônicos às forças do Estado autoritário e religioso, os intelectuais faziam um paralelo com sua época diante de sua rebeldia contra o absolutismo dos reis e sua submissão à autoridade secular da Igreja. Para os intelectuais iluministas, Sócrates tornou-se um herói da luta popular contra o abuso e intolerância do Estado religioso contra os seus cidadãos.

Romantismo

Sócrates: O Degenerado subversivo da Ordem social

Na segunda fase da modernidade, a imagem de Sócrates como líder rebelde toma um caráter pessimista para as reflexões de Hegel, e principalmente de Nietzsche. Ambos observam o ceticismo, consequente da ironia socrática, como elemento desagregador e ameaçador para a ordem social. N’O Crepúsculo dos Ídolos, escrito em 1889, Nietzsche estuda o Problema de Sócrates, onde o filósofo é apresentado como fruto consequente da democracia e da decadência da cultura grega. A miscigenação causada pelo enorme fluxo de diversos povos fez Sócrates possuir uma terrível feiúra, que, demonstra sua falta de apreço para com a beleza estética e desejo de morrer, fazendo todo o povo da comunidade ateniense perder seu sentido de vitalidade em defesa da vida. Inspirado no pensamento criminalista de Lombroso, Nietzsche demonstra que a má aparência de Sócrates demonstra a deformidade de seu pensamento, que busca um mundo imaginário como forma de escapar da realidade. Nesse momento, pode-se notar a aproximação das críticas de Nietzsche com as de Aristófanes.

Pós-Moderno

O Sócrates despedaçado: a fragmentação e desordenamento dos ensinamentos

O romantismo, como uma corrente filosófica antagônica ao iluminismo, vai destronar seus ídolos. Assim, nota-se a forte crítica realizada para Sócrates, que tinha sido eleito representante da Era das Luzes. Os pensadores posteriores à crítica do romantismo alemão vão tentar realizar uma reabilitação de Sócrates como um herói da tolerância. Primeiramente, Kierkegaard vai escrever O conceito da Ironia constantemente referido a Sócrates, escrito em 1841, com a finalidade de analisar a ironia socrática em Aristófanes, Xenofonte e Platão. Kierkegaard conclui que a ironia é a característica socrática por excelência, e os demais conceitos foram enxertos platônicos. Realiza-se assim um dualismo na imagem socrática: de um lado haveria um “Sócrates socrático”, fidedigno à imagem da realidade, e de outro lado um “Sócrates platônico”, criado por Platão para justificar as suas ideias. Esse pensamento maniqueísta sobre Sócrates vai ser hegemônico nos dias atuais. Posteriormente, Popper escreve A Sociedade Aberta e seus Inimigos, em 1945, colocando Sócrates como o líder da democracia, em cuja atitude crítica consiste a manutenção do regime democrático e aberto; e Platão como o discípulo que corrompeu suas ideias, teorizando um modelo cosmológico baseado na astrologia que gerou o determinismo da Sociedade Fechada. Os intelectuais da escola de Frankfurt também vão colocar a ironia socrática como uma das principais características do método sobre a crítica social, capaz de gerar a emancipação individual.  Já para Nicolas Grimaldi, no seu livro Sócrates O Feiticeiro, escrito em 2004, é possível realizar aproximação do pensamento de Sócrates com as religiões de mistério da sua época. O ceticismo socrático é um disfarce mágico das práticas exotéricas (NR: ou seriam esotéricas?) da Antiguidade.

Conclusão: O Esquecimento do Projeto Socrático

Criações de ícones abstratos e ideológicos, e o esquecimento da totalidade do ser do filosofo de Sócrates, fizeram com que fossem apenas imagens caricaturais. Seja de um rebelde contra o autoritarismo do Estado, seja de um criador da desordem que gera outro autoritarismo, essas imagens são contraditórias. Os iluministas apresentaram Sócrates como líder da democracia, sistema político que sempre foi alvo de suas críticas e que o levou à morte. Apesar de alguns contra-argumentarem dizendo que essas críticas provêm de Platão e não de Sócrates, essa ideia também é paradigmática, haja vista que Sócrates também criticou os regimes que sucederam a democracia (como a aristocrata tirânica dos trinta). A ambiguidade de Sócrates de ter sobrevivido tanto na tirania como na democracia, fez das leituras políticas sobre qual sistema político Sócrates seria partidário algo completamente inútil e caricatural, esquecendo-se seu verdadeiro ensinamento.

No caso da Idade Média, é importante apontar que, apesar das semelhanças entre Sócrates e Jesus Cristo. é também necessário apresentar as distinções fundamentais entre ambos, senão ambos seriam a mesma pessoa. A consequente divisão de “dois Sócrates”, como um maniqueísmo socrático é a nova heresia, mesmo crime herético que fizeram com Cristo, pois toda reflexão de Platão é consequente dos seus primeiros diálogos, que nortearam os demais. Todas as distorções da imagem socrática ao longo da história servem para retirar a base de compreender Cristo, visto que Sócrates foi a entrada para o mundo cristão. A compreensão do projeto socrático como é exposto pelo professor Olavo de Carvalho deve ser feita na sua totalidade. As imagens distorcidas de Sócrates geradas pela maioria das escolas que o sucederam, depois de sua morte, marcam semelhanças com muitas conclusões retiradas de alguns autores na modernidade. É, portanto, necessário retornar ao projeto socrático, deixando de lado os estereótipos.

Este é o terceiro texto da série de três textos sobre o livro Apologia de Sócrates, que está sendo elaborado a cada reunião de atividade do GAM.
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