Niilismo, Raiz de Todos os Males do Homem de Hoje

Por Arthur Dutra


Dentro dos esforços do Grupo de Estudo André de Albuquerque Maranhão – GAM em se debruçar sobre temas que evoquem as grandes questões universais que assolam a humanidade na contemporaneidade, surge como objeto de estudo o niilismo, considerado por Giovanni Reale, filósofo italiano, como a “raiz de todos os males do homem de hoje”, conforme enuncia o prólogo do seu livro “O saber dos antigos”. Na citada obra, Reale pretende fazer um apanhado daquilo que chamou de “máscaras do niilismo”, ou seja, os desdobramentos ou formas de manifestação que este niilismo assume quando alcança o estágio mais avançado na história. Antes de adentrar no exame da cada uma das máscaras, listadas de maneira exemplificativa a fim de confrontá-las com o antídoto oferecido pelos antigos, Reale discorre sobre o niilismo, tendo por fundamento as lições deixadas por aquele que teria sido seu profeta: Friederich Nietzsche.

Tido como um fenômeno sem origem definida, o niilismo terminou por ser enunciado por Nietzsche em “Fragmentos póstumos”, como sendo “a falta do fim; falta a resposta ao ‘porquê?`; o que significa niilismo? – que os valores supremos se desvalorizam”. Muito embora tenha sido Nietzsche o profeta no niilismo, o homem que, com sua poderosa inteligência, o tenha colocado em termos teóricos e andado com ele de braços dados como algo positivo, é preciso reconhecer que outros antes dele cuidaram do fenômeno; talvez não de forma filosófica como Nietzsche, mas como algo que acompanha o ser humano em seu conflito consigo mesmo e com a ordem cósmica em que envolto. Foi o que nos legou o grande escritor russo Fiodór Dostoievski, que foi, certamente, o homem cuja obra inspirou os impulsos do filósofo alemão.

Embora haja menções romanescas no livro “Memórias do subsolo”, foi com “Crime e Castigo” que Doistoiévski colocou o niilismo inserido numa vida, mesmo que fictícia, e mostrou de onde ele vem e para onde ele pode levar o homem que se deixa dominar pelos seus desígnios. Raskolnikov é o homem niilista por excelência. É o homem que se depara com sua própria mediocridade e não se conforta com ela, não deixa que ela o amordace no marasmo, não permite que ela seja a reitora de sua vida que se pretende tão luminosa, tão acima do que o homem comum tem como normal e moral. Não! O homem niilista de Dostoiévski quer superar toda a normalidade, toda a moralidade, mas para isso ele precisa superar a si mesmo, visto que ele é, sim, um legítimo representante desta mediania que o puxa para o solo, sem o colocar nem abaixo da linha do horizonte, nem acima do firmamento. É esta posição que o angustia, e ele percebe que está preso a ela graças a todo o conjunto de formulações e normas que regem uma sociedade. A moral, para ele, é um entrave; a lei é um anátema para seus grandiosos planos. É preciso superá-los o mais rápido possível. É preciso que ele seja, em primeiro lugar, capaz não só de querer isto, mas de fazê-lo sem qualquer remorso. Eis o que ele diz:

“A categoria dos indivíduos extraordinários] é composta por aqueles que infringem as leis. Os crimes destes são, naturalmente, relativos (...) e se necessitarem, para bem da sua idéia, de saltar ainda que seja por cima de um cadáver, por cima do sangue, então eles, no seu íntimo, na sua consciência, podem, em minha opinião, conceder a si próprios a autorização para saltarem por cima do sangue, atendendo unicamente à idéia e ao seu conteúdo.”

Então ele parte, imbuído deste alto propósito, para deixar de ser este homem amarrado pelo cabresto moral para tornar-se um ser elevado, um Napoleão coroado, que desenha com a ponta de sua espada os caminhos do próprio destino, deixando marcas não só na História, mas na própria ordem do cosmos. Mas sua mediocridade é tão grande que o máximo que ele consegue pensar em fazer para colocar-se acima é matar uma velhinha judia. O respeito pela vida humana, tido como um valor universal, nada mais vale: isto é o niilismo.

Foi este gancho, esta ideia que certamente abateu-se sobre o gênio tresloucado de Nietzsche. Foi a partir dele que sua mente pôde desenvolver toda uma teia intrincada de poderosas formulações, repletas de estilo literário, para apresentar o niilismo o futuro inevitável da humanidade nos séculos que o seguiriam.

“O homem moderno crê experimentalmente ora neste, ora naquele valor, para depois abandoná-lo; o círculo de valores superados e abandonados está sempre se ampliando”, diz Nietzsche, mais uma vez em Fragmentos póstumos, ao constatar que a história do homem é um constante abandonar de valores, seguido de um igualmente constante adotar de outros. Essa seria a própria dinâmica da História, a sua lógica interna, assim como a luta de classes o é para seu conterrâneo Karl Marx.

Crê Nietsche que de tanto abandonar valores, o homem passa a descrer deles, visto que eles não se mostram perenes e fortes o suficiente para permanecerem. Daí porque a cada tempo que passa os valores eleitos são um dia abandonados com mais facilidade, em menos tempo, culminando no abandono geral dos valores, ou na sua brutal desvalorização. Esta é a obra do niilismo em seu estágio ainda incompleto, e foi neste ponto da História que ele pegou um Nietzsche impregnado de pessimismo e de resistência ao Deus cristão. Foi isto que ele percebeu, tanto nele mesmo quanto em personagens como Raskólnikov, quando disse que “o que virá, o que não poderá ver de outra forma: o advento do niilismo”. Era, portanto, um movimento que já estava plenamente em marcha, vindo de longe, trazendo uma carga pesada em suas costas e que iria, com sua massa avolumada, terminar por esmagar o homem que não soubesse, como ele pensava saber, lidar com esta força da natureza.

Ele se coloca, portanto, como um profeta do que viria, pois percebeu que viria. Mas não só como profeta. Nietzsche foi também um apologeta do niilismo quando sentenciou, não apenas como descrição de uma realidade, que Deus, o maior dos valores a que se apega o homem, estava morto. Uma espécie de cansaço abate o homem que não confia mais nos valores; um marasmo, um fastio dos valores e se seu peso nas vidas sofridas derrearam-lhe as costas. Deus, do alto da sua transcendência, foi – ou deveria ser – morto para que este mesmo homem, soterrado numa solidão, pudesse emergir, liberto das amarras dos valores pré-estabelecidos, para fiar-se pelos próprios valores e ser o senhor do seu destino para fazê-lo grande e progressista, aumentando a cada dia a sua força para ser mais e mais, para ser, pela insaciável vontade de poder, um super-homem. Assim, e só assim, haveria a superação do niilismo, pois o homem, e somente ele, poderia atribuir o valor àquilo que o auxiliasse na concretização da sua vontade de poder. Todo o resto, as construções que fossem alheias aos seus planos de crescimento, seriam relativas e, portanto, inúteis.

Raskonilkov tinha esta visão e acreditava, ainda antes da formulação nietzscheana, que poderia alcançar este patamar de libertação. Tinha apenas que testar sua disposição de ir até as últimas consequências, de chegar até o topo dos valores para visualizá-los todos de cima. Assim ele fez. Mas aqui encontramos a fundamental diferença entre o romancista cristão ortodoxo, que viu o niilismo como uma desgraça para o homem, e o filósofo ateu que queria fazer deste fenômeno algo redentor, que matasse o Deus cristão e o tirasse do seu lugar transcendente, e com ele a própria transcendência, pois é disto que se trata o ateísmo de Nietzsche, conforme assevera Martin Heidegger no ensaio filosófico “A sentença nietzschiana ‘Deus está morto'”:

“...a expressão ‘Deus está morto’ significa que o mundo ultra-sensível não tem força real, não envolve nenhum tipo de vida. A metafísica, ou seja – para Nietzsche – a filosofia ocidental entendida como platonismo, está no fim. Nietzsche considera sua filosofia como a contracorrente da metafísica, isto é, para ele, do platonismo”.

A sentença de Nietzsche, portanto, vai muito além do mero ateísmo. É ela a própria essência do niilismo, que é algo infinitamente maior e mais poderoso que a descrença em Deus, pois mesmo o ateu comum pode reconhecer outros valores elevados, mas o homem tomado pela descrença geral nos valores não consegue enxergar mais nada que lhe atraía como a força do sopro divino.

No romance doistevskiano, o personagem não logra alcançar o nível de independência que imaginava. Ou seja, na ânsia de tornar-se um tipo como Napoleão Bonaparte, a quem ele considerava acima do bem e do mal e dono do seu próprio destino, Raskolnikov encontra a desgraça e o remorso, só curados por um sincero e obsequioso pedido de perdão, que vai formulado em palavras para os ouvidos de uma prostituta, mas que tem como destinatário final aquele Ser Supremo que haveria de ser morto por Nietzsche: Deus. O niilismo como filosofia de vida, portanto, devora seus filhos e, no fim das contas, só os levam para dois lugares: o cemitério, pelo suicídio, ou para o regaço de Deus, através do perdão.

Nietzsche não compreendeu isso e pagou com a própria vida para tentar provar o contrário, tal como já previsto por Dostoievski não só em “Crime e Castigo”, mas também nos romances “Os Demônios” e “Os Irmãos Karámazov”, histórias repletas de personagens suicidas e loucos niilistas. Isto porque quando se perde o valor dos princípios superiores, que são eternos, o próprio espírito se enfraquece, passa a não mais vislumbrar nada elevado para buscar como sua força natural. Ele cansa e se abate, distraindo-se com miudezas e com o nada que encontra vagando por um mundo que a nada mais dá valor. Termina o homem sozinho com suas aspirações megalômanas, chocando-se com os outros homens em conflitos individuais insolúveis, pois não há mais entre eles um princípio comum harmonizador, pacificador, que esteja colocado num patamar superior de hierarquia, mesmo porque a própria hierarquia dos valores e das coisas também deixou de existir. A horizontalidade niilista, repleta de imanência, destrói a relação do homem com Deus, que é essencial e fundamentalmente vertical, com o homem sempre abaixo, bem abaixo, pois deve estar de joelhos. Com o “Deus está morto”, a verticalidade perde a primazia e até deixa de existir, pois teve a conexão cortada pelo niilismo que, antes de dar o arremate final, passou uma borracha no ponto superior desta ligação. A própria horizontalidade virou um caos, pois as linhas são multipartidas pela infinidade de golpes que as fazem traços soltos num espaço que não tem colunas que as juntem e as levem até o ponto aglutinador que fica no alto, no valor primeiro e último da divindade.

Esta é a obra do niilismo. Este é o fenômeno que deu origem a toda uma plêiade de desdobramentos como o relativismo, o pessimismo, a depressão e o aprisionamento do ser humano num plano de considerações delirantes que o ludibriam e o fazem pensar que pode ser, sozinho, o artífice de seu destino, sem ter que prestar contas a mais ninguém a não ser a sua egoísta vontade de poder. Mas este profeta, este super-homem, com sua sanha de cruzar os sete mares com a redenção do gênero humano, naufragou na loucura e na demência. Desavisado, testou sua força, como o fez Raskonikov, e encontrou seu destino, que foi, como nos noticia sua própria história, terrivelmente melancólico e sofrido.

É preciso, portanto, não descurar desta que é uma força destrutiva, que nada constrói no lugar da demolição, deixando apenas a confusão e o caos onde havia ordem ou resquícios dela. Urge conhecê-la em todas as suas manifestações e buscar o remédio com bravura.

Os antigos, com Sócrates, tinham como dever destruir os sofismas, através do confronto a dialético, fim de arrancar o véu da mentira da frente do discurso que afastava o homem antigo da verdade. Mas, uma vez revelado o ardil retórico, dava-se o passo fundamental: o parto da verdade, que impregna a alma e a faz renascer dos escombros da mentira para emergir rumo ao Alto. Este é o movimento fundamental do crescimento, e é esta a razão pela qual Reale recomenda combater o niilismo com o saber dos antigos, notadamente dos gregos, fiando-se no resgate da maiêutica socrática e no zelo preferencial com o espírito como formas de neutralizar esse voo solo do tresloucado e desesperado super-homem niilista nietzschiano.
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