RESENHA DO GAM: AS EUMÊNIDES


“As Eumênides”, de Ésquilo, certamente não é das tragédias gregas mais conhecidas do grande público habituado com as fascinantes histórias de Édipo Rei, Antígona e Medeia, mas é uma das que pode nos oferecer lições interessantes.

As Eumênides faz parte da trilogia denominada Oresteia, que se compõe das tragédias Agamênon e As Coéforas, que lhe antecedem e estão incluídas no Ciclo Miceniano. A trama gira em torno de Orestes, filho de Agamênon, que matou sua própria mãe Clitemnestra (As Coéforas) para vingar seu pai, assassinado pela esposa e seu amante Egisto (Agamênom). Todo o desenrolar dos fatos tem como pano de fundo a Guerra de Tróia, quando Agamenom se alia ao irmão Menelau para irem pegar de volta sua esposa Helena, que foi raptada pelo príncipe troiano Páris.

No caminho para a guerra, o exército grego comandado por Agamenom ficou retido na cidade de Áulis, pois os ventos não eram fortes o suficiente para que os navios navegassem até Tróia. Vendo que os suprimentos se esgotavam e que o exército estava insatisfeito com a paralisação e ameaçando debandar, Agamênom consulta o adivinho Calcas, que diz que a deusa Ártemis mandaria os ventos se o rei ofertasse em sacrifício a sua filha Ifigênia. Após muita discussão entre os irmãos, Agamenom manda buscar a filha para ser sacrificada e atender ao desejo da deusa, que então manda os ventos necessários para que os navios levantassem âncora rumo à Tróia, onde foi obtida a famosa vitória por meio do Cavalo de Tróia após dez anos de batalhas. Todos esses acontecimentos foram narrados por Eurípedes na tragédia Ifigênia em Áulis.

Isto, porém, desencadeou o sentimento de vingança na esposa de Agamenon e mãe de Ifigênia, a rainha Clitemnestra. Ela espera a volta de Agamênon para vingar sua filha. Agamênon retorna triunfante e traz consigo uma troiana que provavelmente é sua amante, a pitonisa Cassandra. Isto só aumenta o ódio de Clitemnestra pelo marido, alimentado por seu amante Egisto, que nutre igual desejo de matar Agâmenon por questões familiares do passado. Fingindo reverenciá-lo, Clitemnestra o aborda enquanto está no banho na banheira, joga uma rede em cima dele e depois o golpeia com uma espada até a morte, sob o olhar cúmplice e covarde de Egisto, que, junto com Clitemnestra, passam a ser os senhores de Argos.

Orestes, ainda bebê, é levado ao exílio quando se tem notícia da tragédia que se abateu, sendo entregue a um preceptor por sua irmã Electra para que ele um dia retorne para vingar seu pai e livrar aquela terra do jugo tirânico que vigorará pelas mãos de Clitemnestra e Egisto.

Os anos passam e Electra aguarda pelo retorno de Orestes. Enquanto isso, vive a praguejar contra a própria mãe e seu amante, que por isso a oprimem mais ainda e não a deixam desfrutar das riquezas do palácio.

Eis que Orestes volta e recebe a determinação de Apolo para vingar seu pai, senhor daquela terra, usando para isso de artimanhas secretas a fim de pegar todos de surpresa. Ele então manda seu preceptor na frente para anunciar a sua morte, que é comemorada por sua mãe e lamentada por Electra, que o aguardava como seu salvador. Orestes, entretanto, ao ver o sofrimento da irmã se identifica e parte para realizar seu plano e assassina a própria mãe e seu amante no mesmo lugar em que mataram seu pai.

Logo depois do crime, Orestes pede refúgio e proteção a Apolo no templo de Delfos e tem seus pedidos atendidos, já que foi o próprio deus quem ordenou que ele vingasse seu pai, assassinando a mãe. A peça, portanto, tratará do julgamento de Orestes após os acontecimentos narrados nas anteriores (Agamênom e As Coéforas).

Em As Eumênides entra em cena uma entidade mais antiga denominada de Fúrias, que anda a perseguir Orestes para puni-lo por ter matado a mãe. Dessa perseguição surge o conflito entre Apolo e as Fúrias, aquele protegendo Orestes, e estas sequiosas por puni-lo com a morte vingadora.

Orestes perseguido pelas Fúrias
Por orientação de Apolo, Orestes vai até Atenas para pedir proteção à deusa da cidade, Palas Atena, vez que esta é a que encarna a Justiça e há de dar-lhe guarida contra as Fúrias vingadoras. As Fúrias saem no encalço de Orestes e o encontram agarrado à imagem da deusa em Atenas. Deparando-se com o conflito de pretensões sustentadas no direito por cada um alegado, Atena resolve delegar aos homens de Atenas a tarefa de julgar Orestes, cabendo a ela apenas o voto de desempate. Foi instituído, assim, o Areópago, o tribunal de cidadãos atenienses. Ao fazê-lo, Atena traz à lembrança dos homens acerca da tarefa de julgar.

“Nesta situação, quer eu lhes dê ouvidos, que não as favoreça, terei de sofrer inevitáveis dissabores. Entretanto, já que a questão chegou ao meu conhecimento indicarei juízes de crimes sangrentos, todos comprometidos por um juramento, e o alto tribunal assim constituído terá perpetuamente essa atribuição. Apresentai, então, vós que estais em litígio, testemunhas e provas – indícios jurados bastante para reforçar vossas razões”.

Por serem entidades mais antigas, as Fúrias invocam as leis antigas que lhes legitimam o poder, advertindo que a subversão de tais mandamentos por um casuísmo levará ao total desrespeito às leis, criando instabilidade e jogando no descrédito essas e outras leis antigas e universais. A abertura de um precedente daquela espécie pode fazer ruir toda a solidez de uma lei antiga e justa, evoluindo para sua gradual e total revolução destrutiva dos próprios homens.

“Prognosticamos para muito breve o advento de uma grave subversão devida a novas leis, se triunfar a causa torpe deste matricida! Logo seu crime justificará o desrespeito de todos os homens, e talhos incontáveis de punhais licitamente dados pelos filhos serão a recompensa de seus pais antes de se passarem muitos anos! Isso acontecerá porque as Fúrias, cuja incumbência é vigiar os homens terão cessado displicentemente de provocar rancor contra os assassinos.
A lei suprema impõe que se venere o altar santificado da justiça em vez de com pás ímpios ultrajá-lo cedendo à sedução de uma vantagem; o castigo virá e ao desenlace nenhuma criatura escapará.
No choque violento e irresistível contra os escolhos da justiça atenta, o infeliz vê naufragar, perdido, sua prosperidade anterior e sem uma lamentação sequer perece para ser logo esquecido”.

Apolo, por sua vez, atuando como advogado de defesa de Orestes, sustenta que o ato criminoso foi perpetrado por um mandamento divino, como forma de vingar a ignominiosa ação de Clitemnestra, além do que o pedido de Orestes ao deus merece a benevolência e deve, portanto, ser atendido na forma de uma defesa.

“Este mortal, de acordo com os sacros ritos, além de ser meu suplicante é um fiel sempre bem-vindo junto ao meu altar; fui eu quem o purificou do sangue derramado; estou aqui também como seu defensor e, mais ainda, como responsável máximo pelo crime de morte contra sua mãe”.

O julgamento termina empatado, vindo Atena a dar o seu voto decisivo em favor de Orestes (o universalmente famoso voto de Minerva, que vem a ser o nome romano de Atena), absolvendo-o e livrando-o do poder das Fúrias vingadoras.

Diante do resultado, em gratidão, Orestes promete fidelidade eterna à Atenas.

“Quero fazer o juramento mais solene, eternamente válido, em tua cidade e na presença de teu povo generoso neste momento em que recupero meu lar. Jamais um homem investido no poder em Argos, que é meu reino, empunhará as armas contra tua cidade; eu mesmo, de meu túmulo, provocarei a perdição dos transgressores do santo juramento feito neste instante, lançando sobre eles males sem remédio, tirando-lhes o ânimo durante a marcha e pondo em sua rota lúgubres presságios, levando-os a desistirem de seus planos”.

Enquanto isso, as Fúrias, indignadas com a derrota e com a nova ordem divina que se estabelece a partir dali, prometem amaldiçoar a cidade com pragas e desgraças.

“Ah! Deuses novos! Como espezinhais as leis antigas, pois arrebatais de nossas mãos o que sempre foi nosso! E nós, infortunadas e menosprezadas, faremos com que este solo sinta o peso todo de nosso rancor! Ai! Ai de nós! Nosso mortal veneno vai ser a arma de cruel vingança! As gotas, destiladas uma a uma por nossos corações, custarão caro a este povo e à sua cidade; uma praga mortal sairá delas, fatal a todos os frutos da terra e aos vossos filhos!”.

Para acalmá-las e evitar a continuidade da desgraça, Atena sugere que as Fúrias tomem assento no bosque vizinho à cidade para que sejam cultuadas pelo povo ateniense, que será em breve glorificado por vitórias e viverá um período esplendoroso, e em troca as Fúrias ofertarão sua proteção à cidade.

“Desejo oferecer-vos de maneira justa asilo e proteção nesta cidade; aqui, no trono de vossos altares reluzentes, tereis assento e respeito de meu povo”.

Elas relutam, e após um longo diálogo com Atena (kommos), elas amainam o espírito e terminam por aceitar, sendo conduzidas por uma procissão rumo ao bosque que passará a se chamar de Bosque das Eumênides.

No fim, vê-se que o julgamento favoreceu às duas partes, mas principalmente à Atenas, cidade que cultuava Palas Atena, que deu o voto desempate para absolver Orestes, que jurou fidelidade e aliança eterna com a cidade, e ainda acalmou as Fúrias oferecendo-as abrigo e culto em troca de usarem seus poderes para proteger a cidade. Vê-se que a Justiça, encarnada em Atenas, foi prestigiada, graças a atuação conjunta de deuses e homens, mostrando que o ideal de Justiça é aquele valor maior que deve ser buscado a todo instante pelos humanos, suplicando auxílio nas leis divinas para fazê-la triunfar pelo mundo, cessando as misérias que abatem o homem, como aconteceu com a família de Agamênom, que após a absolvição de Orestes teve paz e pôde seguir seu caminho dentro da ventura.

Existia, portanto, uma cadeia de infortúnios trágicos que foi iniciada pelos homens visando a fortuna, e que se perpetuava no tempo, passando por várias gerações, graças ao sentimento de vingança que toma aqueles que sentem a injustiça dos atos praticados, pretendendo repará-la com as próprias mãos e dentro daquilo que eles próprios entendem por justiça. Só que no último capítulo da série de tragédias do Ciclo Miceniano, os homens, Orestes nele representados, pedem ajuda aos deuses (Apolo e Atena) para salvar a sua pele e restaurar a verdadeira justiça, e esta é ofertada da única forma possível: com um ato benevolente, ou seja, a absolvição, estancando, assim, o sentimento de vingança que estava com as Fúrias.

Atena, encarnando ali a Justiça, quebra a cadeia de vingança ao desempatar o julgamento feito pelos homens, que não chegaram a um resultado, mostrando com isso que a justiça dos homens é vacilante e pouco confiável, deixando claro também que o verdadeiro julgamento, aquele que será ofertado de maneira justa é o divino, razão pela qual se deve proceder com cautela ao julgarmos alguém e nunca o fazendo de forma definitiva, pelo menos quando estiverem envolvidos bens de maior monta como a vida e a liberdade.

Vemos que a decisão de Atena poderia parecer injusta aos olhos dos homens, uma vez que deixa impune um homem que matou a própria mãe. Porém, ao absolvê-lo, Atena diminui o poder das Fúrias que alimentam o sentimento de vingança no mundo, e ainda consegue que Orestes seja fiel à cidade de Atenas. Diante da revolta das Fúrias, Atena oferece um consolo que há de reparar o sentimento de injustiça que as domina, arrefecendo seu desejo de destruir a cidade. Assim, oferece-lhes o respeito e o culto dos cidadãos atenienses, tornando-as deusas cultuadas e adoradas como jamais foram.

Na constituição do tribunal para julgar Orestes, percebe-se que é o momento em que os deuses entregam os destinos dos homens aos próprios homens, sem, entretanto, deixar de influir neles, como bem demonstra a atuação de Apolo e das Fúrias como defensor e acusador, respectivamente, cabendo o juízo terreno aos homens formados em colegiado, e o final a Deus.

A intervenção de Atena desempatando o julgamento não deslegitima a atuação dos homens como julgadores. Ela apenas serve como exemplo a ser seguido, visto que a decisão de Atena trouxe a pacificação, embora tenha deixado um grave crime impune. Isso se verifica ao analisarmos os efeitos e os desdobramentos da decisão, de modo que não se faz justiça olhando para o presente ou o capricho íntimo das partes, e sim mirando o futuro e a verdadeira pacificação dos homens.

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