A base moral da economia capitalista








"O senhor defende a ética na política e na economia, mas como é possível propor a vigência da ética na sociedade quando, ao mesmo tempo, o senhor defende o capitalismo como sistema econômico?" A pergunta me foi dirigida por um telespectador do "Roda Viva" da última segunda-feira. Por falta de tempo, contudo, a questão infelizmente acabou nem sendo levada ao ar durante o programa. Mas como ela reflete uma confusão que parece estar extremamente difundida no Brasil hoje em dia, acredito que vale a pena tentar respondê-la.

Qual a relação entre ética e capitalismo? A primeira vista, de fato, nada poderia parecer mais incompatível. Falar em ética, muitos ainda acreditam, é negar a própria essência do capitalismo –um sistema no qual prevalece a lógica implacável da acumulação a qualquer preço, do egoísmo sem freios e do oportunismo. Afinal não foi Marx quem disse, pensando talvez na sua própria situação pessoal de penúria, que no capitalismo "quanto maior o interesse do indivíduo pela sociedade, menor o interesse da sociedade nele"?

Ao contrário da crença predominante em amplos setores da opinião pública e da intelectualidade brasileira, acredito que existem boas razões para sugerir que esta visão da suposta incompatibilidade entre ética e capitalismo é profundamente equivocada. Vejamos, para começar, uma situação extrema.


Considere uma sociedade hipotética na qual não haja limites para o uso do dinheiro. Tudo pode ser objeto de compra e venda –tudo tem um preço. Nas relações privadas entre as pessoas é possível adquirir qualquer coisa, desde órgãos humanos, fetos e bebês até serviços sexuais, lugares em filas e a eliminação de inimigos. Nas relações com o setor público, a mesma coisa: votos, cargos, fiscais, juízes, decisões de política econômica, enfim, tudo o que diz respeito ao governo pode ser comprado por qualquer cidadão que esteja disposto a pagar o preço.


Até que ponto um sistema assim constituído –uma sociedade na qual o dinheiro manda em tudo e é capaz de tudo– poderia ser visto como o capitalismo levado às suas últimas consequências? Isso não seria exatamente o capitalismo em estado puro?


Um primeiro ponto é lembrar que, mesmo que todos os limites morais ao uso indiscriminado do dinheiro fossem abolidos, ainda continuariam existindo limites lógicos para o que ele pode comprar. Há coisas na vida, como por exemplo a lealdade de um amigo, sócio ou colega de trabalho, que simplesmente não são passíveis de compra e venda e isso mesmo que não houvesse qualquer restrição moral à sua aquisição por dinheiro.


O limite aqui é natureza lógica. A idéia de comprar a lealdade é uma contradição em termos. Lealdade comprada é lealdade negada. Se é possível comprá-la, então ela já não é o que afirma ser. O mesmo vale para outras categorias fundamentais das relações humanas –vínculos da maior importância mesmo de um ponto de vista estritamente econômico– como solidariedade, confiança, admiração, amizade e amor.


Este, no momento, é um ponto incidental. O argumento central sobre a relação entre ética e capitalismo é a tese de que as regras do jogo da economia de mercado dependem de uma infra-estrutura moral. Assim como o sistema democrático na política, o mercado na economia é um conjunto de normas de convivência civilizada. O grau de adesão e respeito a essas normas está ligado aos atributos morais dos participantes. O capitalismo moderno não só não é incompatível com a ética, como não pode existir sem ela.


A generalização feita pelo sociólogo alemão Max Weber vai ao âmago da questão: "O predomínio universal da absoluta inescrupulosidade na busca de interesses egoístas pela via da obtenção de dinheiro tem sido uma característica específica precisamente daqueles países cujo desenvolvimento burguês-capitalista, medido de acordo com os padrões ocidentais, permanece atrasado". O egoísmo sem freios e o oportunismo tendem a florescer não nos países onde o capitalismo desenvolveu-se, mas naqueles onde ele não se firma.


O argumento de Weber, diga-se de passagem, já estava contido na observação do economista inglês Alfred Marshall, segundo a qual "os métodos modernos de comércio requerem hábitos de confiabilidade, de um lado, e um poder de resistir à tentação de ser desonesto, de outro, que não se encontram no seio de um povo atrasado". Na visão marshalliana, a falta de uma infra-estrutura moral adequada é um dos maiores obstáculos ao desenvolvimento do capitalismo e à superação da pobreza no mundo.


A evidência histórica e alguns episódios recentes confirmam plenamente esta observação. Considere, por exemplo, o desabafo sombrio feito há pouco pelo presidente do Zaire, Mobuto Seko: "Tudo é para vender, tudo é comprado em nosso país e, nesse tráfico, possuir qualquer fatia de poder público constitui um verdadeiro instrumento de troca, que pode ser convertido em aquisição ilícita de dinheiro ou outros bens". O Zaire, obviamente, não é aqui.
Outro exemplo é o depoimento de um policial chinês reproduzido na penúltima edição da "The Economist": "Há preço para tudo: um preço para tirar um ladrão da prisão, um preço para libertar um estuprador e até mesmo um preço para soltar um assassino".


Situações como essas não têm nada a ver com capitalismo em estado puro. Pelo contrário, sua vigência e generalização representam a negação da possibilidade de existência da economia capitalista. A inescrupulosidade no uso do dinheiro e a ausência de restrições morais, tanto nas relações privadas como naquelas entre o setor privado e o público, representam sinais claros do baixo grau de adesão dos indivíduos às normas de comportamento sem as quais a ordem de mercado e o capitalismo moderno são impossíveis.


O fato é que quanto maior o tamanho do Estado, maior o potencial do estrago causado pela eventual falta de ética dos governantes. Uma boa epígrafe para a revisão constitucional brasileira seria o alerta de Milton Friedman: "Um governo severamente limitado tem poucos favores a dar. Como consequência, haverá pouco incentivo para corromper autoridades estatais e o serviço governamental terá poucas atrações para as pessoas preocupadas principalmente com o enriquecimento pessoal". 

Texto Publicado na Folha de São Paulo
14 de janeiro de 1994

Eduardo Giannettida Fonseca é economista brasileiro, Doutorado em economia pela Universidade de Cambridgeonde foi professor entre 1984 e 1987 e de 1988 a 2001. Lecionou na FEA/USP. Atualmente é professor integral no Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa), conhecido anteriormente como Ibmec São Paulo.


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