Por Douglas
Cavalheiro (*)
O julgamento de
Sócrates foi fruto do falso testemunho. Acusado de não acreditar nos deuses da
cidade, de propor a criação de novos deuses e de corromper a juventude,
Sócrates demonstra durante sua Apologia que essas acusações são consequências
diretas de ações caluniosas da difamação realizada pela peça "As
Nuvens" de Aristófanes, o qual afirmava que Sócrates recebia dinheiro
pelos seus ensinamentos, que seriam nada mais que técnicas retóricas para o
engano de jovens.
Segundo o oitavo
mandamento, é pecado a prática de acusações "em falso testemunho contra o
teu próximo" (como pode-se notar, este mandamento está em analogia com o
mandamento cristão de "ama teu próximo como a ti mesmo").
O perjúrio é a última
etapa do processo da formação do falso testemunho. A primeira etapa são as fofocas e boatos que
surgem de maneira informal, com finalidade de estabelecer uma discussão de
zombaria diante de características exóticas do próximo. Esse processo de
difamação informal se torna mais profundo no momento em que surgem as calúnias.
A segunda etapa é quando surgem provas materiais, "hoax" que
justifiquem as fofocas. Desta forma, as histórias expandem-se na sociedade, realizando,
então, a terceira etapa: a formação de juízos temerários. A opinião pública
começa a rejeitar determinada pessoa, ou grupo social, devido à ampla
consolidação no imaginário social gerado pela divulgação das provas caluniosas
baseadas em boatos. A fase final do processo de difamação é quando esta pessoa
caluniada encontra-se em julgamento para responder diante as provas falsas, e
outras pessoas testemunham contra o réu, tal como Sócrates, e a faz encontrar o
fim de sua vida. O oitavo mandamento trata de uma condenação não apenas aos que
se prestam em testemunha em falso, mas para todo esse processo de difamação.
Dessa forma, é
evidente que a mentira que prejudica ao próximo é algo pecaminoso, maléfico e
imoral. Para ela aplica-se a mais árdua das penitências àqueles que são
condenados: catar todas as "penas espalhadas ao vento". Todavia,
haveria uma maneira de mentira benéfica? Uma mentira justa?
A mentira como
auxílio ao próximo ocorre muitas vezes na maneira de lisonja. Mas isso também configura
outro falso testemunho, visto que o adulador age de má-fé, alimentando o ego
alheio de irrealidades com o objetivo de conseguir algum favor em troca. Por
isso, para Kant não haveria um suposto direito de mentir por amor à humanidade,
pois não há nenhuma mentira racionalmente válida para justificar sua
existência. Todos teriam, segundo Kant, um direito de saber a verdade e,
simultaneamente, o dever imperativo de sempre comunicá-la. Para Kant, seria
injusto mentir até mesmo para ajudar uma pessoa que estivesse em apuros. No
mundo do absolutismo moral de Kant, apenas se justificaram as leis
racionalmente válidas, mais próximas da verdade do que os mandamentos divinos,
que seriam baseados na fé e no sentimento religioso.
Aristóteles já sabia
que era impossível obter a fórmula mágica da racionalidade ética contra a
mentira, pois "ninguém jamais irá
acreditar em alguém que afirme nunca ter mentido". Kant queria buscar
uma ciência da ética através de uma norma universal, o imperativo categórico.
Dessa maneira, Kant achava possível combater o relativismo moral promulgado por
Nicolau Maquiavel, que justificava o poder dos governantes em utilizar a
mentira ao seu favor. Kant identifica essa maneira de agir com os governos
autoritários, pois mentir seria uma perversão da faculdade da expressão e
comunicação, gerando assim um sentimento de desconfiança generalizado na
sociedade, facilitando o processo de formação de tiranias. Para Kant a ordem
social poderia ser mantida apenas através da verdade.
Porém, a ética deontológica
kantiana refunda uma nova maneira de absolutismo político através do império da
ordem moral. Caso Kant tivesse um judeu escondido em sua casa, ele respeita
mais o suposto direito de verdade que o agente da Gestapo possui, do que a vida
de um judeu que muito provavelmente morreria numa câmara de gás. Kant recriou a
tirania, substituindo o discurso do mandamento divino para uma fundamentação
racional. Diante de tudo isso, sábio foi Aristóteles, ciente da impossibilidade
da formula universal da verdade, se poderia afirmar que o imperativo categórico
trata-se de mais uma das sedutoras mentiras de nossa trágica modernidade.
(*) Texto apresentado na XVI reunião ordinária do GAM, realizada em 19 de novembro de 2014.